domingo, 19 de novembro de 2023

O DAIME NO CEARÁ


Dos primórdios de uma vila de pescadores para um dos pontos turísticos mais procurados do Estado, distante 12 km da sede do município de Aracati, ao qual pertence, e a 165 km da capital cearense, Canoa Quebrada é uma praia conhecida por ser um local paradisíaco e exótico, que atraiu viajantes curiosos para conhecer uma vila de pescadores isolada e rústica, a maioria mochileiros que buscavam paz e tranquilidade. Segundo o censo realizado em 2010 pelo IBGE, Canoa Quebrada é definida como uma AUI - Área Urbana Isolada, por ser considerada uma área urbana, porém separada do município de Aracati, por uma área rural ou outra área limite. Possui 2.918 habitantes e é composta por 1.491 domicílios.1

Nas origens do vilarejo, de acordo com relato de memória, o naufrágio de uma embarcação, teria dado o nome do local, como sugere a descrição de Silva (2013, p. 74): “José da Rocha Freire, historiador e poeta já falecido, mais conhecido pelos munícipes como Zé da Melancia, conta em versos, que a designação de Canoa Quebrada, deve-se ao naufrágio de um navio português, que encalhou na enseada”.

Essa embarcação era capitaneada pelo português Francisco Ayres da Cunha, que, segundo as narrativas do poeta Zé da melancia, ao se chocar nessa formação rochosa, ficou encalhada na beira da praia atraindo a atenção dos nativos para verem a “Canoa quebrada na beira da praia”, o que teria originado o topônimo.

O episódio real ou imaginário faz referência aos primeiros tempos da colonização, ao momento do estabelecimento das capitanias hereditárias. Ayres da Cunha, juntamente com Fernão Álvares e João de Barros, associaram-se e promoveram grande expedição para tomar posse das “capitanias do norte”. A expedição, sabe-se, foi malograda, em decorrência de naufrágio na costa do Maranhão, no qual Cunha perdeu a vida, conforme destaca Varnhagem (1877).

Além da dificuldade de acesso, não existiam estradas, sequer as chamadas “carroçais”, apenas uma trilha que alguns veículos se limitavam a passar, fazendo o visitante descer e fazer a pé todo o percurso que incluía subir uma grande duna.

O vilarejo não dispunha de energia elétrica, e água potável só era encontrada em algumas cacimbas ou posteriormente em um único chafariz, no qual moradores a buscavam, com métodos de transporte rudimentares:

A vila era muito simples, e nessa época 1982 ainda não tinha estrada que chegasse até aqui a vila, você tinha que descer lá embaixo, no pé do morro, a estrada de Aracati chegava até ali, você tinha que carregar as mochilas nas costas e subir a duna, a pé, n tinha energia elétrica, nem agua encanada, o pessoal carregava a agua nas costas nos galões de agua em um poço que tinha um cata-vento, depois um chafariz, o pessoal abastecia, fazia a fila das latas de agua, pra levar pra casa, carregando nas costas ou no jumento, pra quem tinha um dinheirinho pra pagar, paga um frete no jumento (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Um dos fatores importantes para o conhecimento sobre Canoa Quebrada foi a gravação de um filme francês, intitulado “Operação Tumulto” de 1968. O filme, na verdade, nunca foi exibido, por motivos controversos. Alguns dizem que o cineasta Édouard Luntz teria mudado o roteiro do filme desagradando os produtores norte-americanos; outros dizem que a produção desagradou os militares no período da ditadura militar.2 O que se sabe é que nunca houve exibição do filme, apenas uma divulgação na Europa de algumas imagens, o que possivelmente fez com que alguns aventureiros viessem procurar aquele local exótico e de natureza bela e simples.

Ao pensarmos Canoa Quebrada como esse povoado em formação com influências indígenas, negras, dos nativos, posteriormente se somando com a chegada dos visitantes multiculturais que se fixaram na localidade, estreitando relações e transformando aquele ambiente, percebemos que essa transformação gradativamente foi formando uma nova mentalidade de uma localidade que se dispôs aberta para o novo, novas ideias, novos ideais; isto se dá principalmente quando esses nativos acolhem em suas residências os primeiros novos visitantes, e este grupo vai se moldando a essas novas ideias relacionadas ao bem-estar com a natureza, o respeito, a paz e o amor entre os indivíduos.

A vida era um paraíso, eu posso dizer que conheci o paraíso na terra, foi esse aqui, porque tinha tudo que eu e outras pessoas procuravam que já citei, tudo que era de bom, principalmente uma característica marcante aqui, que fizesse que eu ficasse aqui junto com outras pessoas, foi a hospitalidade do povo local, a cultura em geral, e principalmente essa característica cultural foi a hospitalidade que nunca me fez sentir um estrangeiro, foi o único lugar que cheguei e não me senti um estrangeiro, me senti em casa, dentro de casa (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).

Ah era legal, a gente morava em casa com janela aberta, porta aberta, não tinha luz elétrica e nem agua encanada, a gente ia pegar água no poço, era outra história, outra vida, um lugar que a gente morava com muito prazer longe dessa babilônia, desse capitalismo, quando chegou o “capetalismo” Canoa Quebrada acabou...” (ENTREVISTA CONCEDIDA POR MARIN GONZALES ALBERTO, 2016).


Através dos depoimentos colhidos, percebe-se que parte desses jovens tinha ligação com o ambiente de contestação do fim da década de 60 e início da década de 70, dentre os quais alguns influenciados pelo movimento “hippie”. Essa juventude contestava os valores morais, políticos e culturais do momento, valorizando a amizade, a paz e o amor, valores muito bem encaixados e encontrados na calmaria e tranquilidade dessa vila de pescadores.

Logo houve uma empatia entre esses jovens com os nativos, fazendo que essa aproximação cada vez trouxesse mais elementos a serem incorporados nessa localidade, já que esses jovens se instalaram se relacionando com esse povoado. Muitos pescadores cediam espaços em suas casas para esses jovens, na maioria das vezes, sem atividade comercial, muitos fizeram famílias, trazendo diversas influências culturais, segundo Silva (2013, p.80):

Eles foram atraídos pelo cenário bucólico, pela bela unidade paisagística natural e por uma população nativa, apresentando costumes simples e vida hospitaleira. Os hippies passaram a frequentar a região, num convívio de amizade com os canoenses, transformando o lugar num reduto de “paz e amor”, unindo “mil culturas”.


Diríamos que toda essa relação embasada na cordialidade entre nativos e hippies, juntamente com paisagens belas e exóticas, longe de atividades comerciais predatórias, sem todos os males que assolavam o planeta naquele momento, faziam de Canoa Quebrada um dos locais paradisíacos para esse movimento, fixando tal ideia no imaginário popular do estado do Ceará, de Canoa Quebrada como a “praia dos hippies”.

Canoa não se diferenciava muito na sua parte física das outras comunidades litorâneas, mas sim em que diz respeito a hospitalidade, isso é um dado muito importante, muito forte, é um dado imaterial que uma cultura possui, que faz uma característica diferenciada, aliada a uma beleza natural do local que é fantástica, um negócio assim surreal (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Todos esses ideais alternativos eram distintos e predominavam em várias esferas, sejam elas culturais, sociais e até mesmo espirituais, nas quais aquela juventude buscava o novo, inclusive em relação às doutrinas orientais, a meditação, o budismo, o movimento Hare Krishna, o hinduísmo, entre outras vertentes. Havia também o uso de substâncias psicoativas, não somente em um contexto recreativo, mas sim de autoconhecimento, sendo essas práticas direcionadas à busca de novas terapias, nas sendas abertas por contemporâneos como o escritor Aldous Huxley3, autor da obra de ficção Admirável Mundo Novo, que faz referência a uma sociedade tecnológica futurista; e o professor de psicologia clínica de Havard, Timothy Leary,4que usava doses de LSD em seus experimentos com alunos e se tornou um dos gurus da contracultura.5

A semente plantada por esses viajantes que chegaram em Canoa Quebrada vai florescer na localidade, fazendo com que alguns deles passem a morar ali, encontrando inicialmente um ambiente propício para exercer o seu modo de vida, englobando conceitos de pacificidade e harmonia com as pessoas e a natureza. Ao artesanato diverso já existente, como as rendas dos nativos, somam-se atividades por eles criadas e desenvolvidas, como joias em prata, arte com matérias diversos como durepox, couro, arame e etc.

Eu gosto muito ainda de viajar, na época que conheci Canoa Quebrada era viajante, mochileiro, artesão, viajava muito no Brasil, na Europa, na Ásia na índia, vendia meus matérias, procurando e vendendo pedra, sou ourives joalheiro, trabalho prata ouro, lapido pedra. Praticamente não tinha ourives aqui, esse trabalho que se vende hoje na praia, a maioria foram copiados de mim e do Zoinho, trabalhávamos juntos, esse pessoal que trabalha prata hoje praticamente não criaram nada, copiaram nós (ENTREVISTA CONCEDIDA POR MARIN GONZALES ALBERTO, 2016).


O ambiente livre favoreceu também a experiência de novas formas de espiritualidade, que, em sua essência, estava em constante proximidade com tudo aquilo que eles buscavam naquele momento, principalmente pelo uso de uma substância psicoativa. Num primeiro momento, por muitos serem ou já terem sido usuários de outras substâncias psicoativas, surgiu a curiosidade sobre os efeitos do daime. Segundo os primeiros adeptos, ainda não se tinha conhecimento do que aquilo realmente era:

Vários anos depois aqui nem eu tinha informação a respeito de daime, ayahuasca, nessa época nada, né, o que rolava por aqui por conta das visitas e tudo, a gente fumava, era o que nós conhecíamos, não tinha outras substâncias aqui na comunidade, somente o fumo, passaram então vários anos e começaram a chegar outras substâncias [...] até quando de repente, um dia, chegou a novidade que tinha chegado uma bebida e que iria ser tomada... (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Além de se sentirem atraídos por aquela nova forma de espiritualidade que fazia uso de uma substância psicoativa - sendo os psicoativos fator importante que moldou suas vidas - os novos adeptos viam no Santo Daime uma forma de buscar o autoconhecimento, num primeiro momento, sem ter nenhum método regulador ou pessoa que lhes indicassem como ser ou se portar nas decisões e no seu modo de viver, mas apenas o próprio contato com a bebida e os cânticos, partindo daí a busca para conhecer a si próprio.


1 SIQUEIRA, Felipe de Souza. URANO, Débora goes. PEREIRA, Raquel Maria Fontes do Amaral. O setor hoteleiro na praia de Canoa Quebrada/CE: Processo de expansão urbana e turística. Revista de turismo contemporâneo. 2015.

2 Conforme informações disponíveis em: <http://gentedemidia.blogspot.com.br/2011/01/cinema-o- filme-proibido-feito-em-canoa.html>

3 Escritor britânico, entusiasta do uso do ácido lisérgico(LSD) como descobrimento e ápice da condição humana. https://www.biography.com/people/aldous-huxley-9348198

4 Psicólogo, neurocientista, escritor, ficou conhecido como estudioso dos benefícios terapêuticos e espirituais do LSD. Personagem importante na década de 60, professor da universidade de Harvard, fez experimentos com seus alunos ministrando LSD de forma terapêutica. https://psychology.fas.harvard.edu/people/timothy-leary

5 SAES, Diogo Xavier. Os Cromáticos anos 60: contracultura, drogas e psicodelismo. Simpósio II congresso internacional de estudos do rock. Unioeste, 2015.

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