domingo, 19 de novembro de 2023

O DAIME NA CANOA QUEBRADA

 

Os primeiros indícios sobre a doutrina do Santo Daime no Ceará, segundo alguns dos adeptos entrevistados são similares. Antes do primeiro contato dos adeptos moradores de Canoa Quebrada, no município de Aracati com a doutrina, alguns conviveram com um homem chamado Oswaldo, um dos vários viajantes que passavam por Canoa Quebrada. De nacionalidade Argentina, de origem da Terra do Fogo, Oswaldo passou pela praia no início da década de 90. Ele falava sobre o Santo Daime e dizia que já tinha frequentado o Céu do Mapiá, comunidade localizada em Pauini (AM), berço de uma das matrizes da doutrina do Santo Daime. Em suas falas sobre a experiência, Oswaldo disse que teria vivido na comunidade liderada por Padrinho Sebastião e que tinha convivido pessoalmente com esse líder em seus dois últimos anos de vida, de 1988 até 1990.

Esses relatos das experiências de Oswaldo com o Santo Daime ficaram marcados na lembrança de alguns adeptos que mais tarde vieram a conhecer a doutrina e a participar da fundação da Igreja Flor da Canoa, em 1998, a primeira igreja do Santo Daime fundada no Ceará. As histórias que ele contava sobre a doutrina e o Padrinho Sebastião só iriam ser entendidas por esses futuros adeptos depois de vários anos, como nos foi afirmado nos seguintes depoimentos:

Fazia dois anos que tinha chegado Oswaldo, um argentino da Terra do Fogo, falando a todo o povo, porque Canoa, na época, eram 500 pessoas, não é como agora, o povo se conhecia e tudo era pequenininho, tu ia daqui pra lá era rapidinho, era outra história, né? Aí antes de 91, quando nasceu Noemi, minha primeira filha, lá em Canoa, já estava Oswaldo lá, doutrinando a todo mundo, falando da coisa que nós agora sabemos, depois de 20 anos, e olhe lá, me contava coisa que até hoje eu não entendo muito não...” 19 de novembro de 2014 (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO, 2014)

O José falou que, mais ou menos em 91, tinha uma pessoa aqui chamada Oswaldo que falava em daime, disse que tinha vivido no Mapiá (...) Eu conheci ele também, ele me falou sobre como era e tudo mais, mas só de falar, foi informação verbal, falava alguma coisa com fundamento da doutrina, aqui e acolá ele cantava algum hino da doutrina” (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Dentre esses primeiros adeptos, está José Olano, argentino, que assim como vários estrangeiros “mochileiros”, se encantou com Canoa Quebrada e decidiu nela se instalar. José era mestre ourives e foi um dos primeiros a trabalhar com artesanato de joias em prata, inclusive iniciando várias pessoas nessa arte, fazendo Canoa Quebrada ser conhecida como uma localidade onde esse tipo de artesanato era bastante autêntico e difundido, ainda hoje sendo uma das marcas da localidade:

Têm artesanato de todo os tipos: durepox, couro, arame, coco, etc. O que mais predomina é a prata, atualmente tem umas oito oficinas trabalhando a prata. Vale citar dois mestres prateiros: José e Beto, que de suas oficinas nasceram bons profissionais da prata. Infelizmente hoje essa arte está ameaçada por comerciantes de artesanatos que compram em grandes quantidades, e vendem mais barato (CANOA NET, 2014).


José passa a ser bastante conhecido entre os moradores, principalmente entre os amigos estrangeiros que estavam ali em busca de um local de paz e tranquilidade, tornando-se também o “introdutor” das novidades na localidade. É através de José argentino, como era conhecido, que o Santo Daime vai entrar em Canoa Quebrada.

Esse primeiro contato de José com Oswaldo fez com que o mesmo ficasse com essa lembrança do Daime em mente por algum tempo e, em janeiro de 1994, um amigo de José, chamado Flávio Bombonato, mineiro, chega em Canoa Quebrada, vindo de Minas Gerais, trazendo uma garrafa de 750ml com a bebida. José sentiu-se animado e logo tratou de providenciar um local para poderem tomar a bebida conhecida como daime. Juntamente com sua esposa, Socorro, Flávio e mais duas pessoas, tomaram a bebida na casa de um amigo, chamado Oscar de la Santa, conhecido popularmente em Canoa Quebrada como Índio.

No ano de 94, foi em janeiro de 94, que chegou o Flávio, aí ele trouxe um daime de Minas Gerais, lá de morro de São Sebastião de Ouro Preto, aí tomamos na casa do Oscar, ele emprestou lá a casa pra nós e tomamos Flávio, Socorro, eu e Luiza uma, menina de Minas, e Aracelia, uma amiga nossa, foi lá a primeira vez que tomamos. Aí, puxa, eu gostei pra caramba né, me assustei bastante também, aí foi que disso, isso foi em 19 de janeiro de 1994 (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO, 2014)

Bom então quando chega a bebida aqui pela primeira vez eu já estava com uma lanchonete lá em cima no comércio, e me pediram minha casa pra tomar, José e mais uns companheiros, foi a primeira vez que tive um contato dessa forma, indireto com a bebida, e por conta da relação pessoal e pela quantidade que era quase um litro, uma garrafa somente, não fui convidado para participar, mesmo sendo tomado aqui na minha casa. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Esse primeiro contato com a bebida fez surgir o interesse de José Olano pelo Santo Daime, que passou a buscar a bebida para continuar fazendo uso juntamente com mais pessoas que foram se juntando ao grupo posteriormente. É importante salientar que, para uma reunião se configurar como um trabalho da doutrina do Santo Daime alguns elementos específicos devem existir, como os hinos, que geralmente são do fundador da doutrina (Mestre Irineu) ou dos seus principais seguidores, a caracterização do fardamento dos membros com uma indumentária específica para homens e mulheres, existindo dois tipos de fardamento, a azul e a branca, além de preces e orações cristãs e um modo padrão de leitura para abertura e fechamento dos trabalhos.

Apesar desse primeiro contato não ter sido ainda um trabalho ritualístico completo da doutrina, já foi em um modo de trabalho espiritual, pois eram cantados alguns hinos do Mestre Irineu, além da bebida trazida de Minas Gerais ser oriunda de um núcleo espiritualista chamado Flor do Ouro. Indagado de como foram esses primeiros encontros e se já eram com os hinos do Santo Daime, José e Oscar de la Santa responderam:

Sempre foi com os hinos, sempre foi com o mestre Irineu, desde o princípio, a primeira vez na casa do Oscar que chegou Flávio, foi cantando o mestre Irineu, eu me lembro que eu começava a cantar com os gritos, e o povo sorrindo de mim (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO,2014)

E depois a primeira vez que tomei foi na casa de José, eles trouxeram a bebida já um pouco mais embasada na questão da doutrina, porque, quando tomei pela primeira vez, a gente já vinha direcionado por ser um daime que veio da Barquinha, então já veio direcionado para uma linha espiritual, não era como chegou a bebida toma e faz o que bem entender. A partir daí já veio direcionado nessa linha espiritual, já era daime, já tinha os hinos, já tinha todo o entorno espiritual, embora a gente não tinha condições de fazer nada, nós não éramos capacitados, só que por força da energia mesmo, a gente já se encaminhou nesse sentido (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Percebemos então que, desde o primeiro encontro, já havia uma relação para com um trabalho espiritual e não apenas tomavam a bebida sem nenhum direcionamento ou de forma recreativa, apesar de ainda não se tratar da doutrina e de que somente um participante do grupo, chamado Flávio, soubesse então cantar alguns dos hinos do ritual.

O grupo de pessoas foi aumentando, assim como o modelo do trabalho foi cada vez incorporando os elementos padrões da doutrina, mas havia uma questão chave para a manutenção do grupo e a continuidade dos trabalhos espirituais, que era o sacramento, ou seja, a bebida. Foi então que José Olano, que estava de viagem marcada para Argentina, passa antes por Ouro Preto, em Minas Gerais, e visita o núcleo de onde Flávio tinha trazido a bebida para Canoa Quebrada. Nessa visita, José e Socorro participam de um trabalho no dia 8 de março de 1994, dia internacional da mulher. O grupo consegue o contato para adquirir a bebida com uma senhora denominada Sandra, que era filha do mestre Antônio Geraldo1, da Barquinha. Com a bebida sendo adquirida pelo grupo, os trabalhos espirituais em Canoa passam a ser realizados de forma itinerante, em diversos locais, geralmente em casas próprias dos participantes ou de amigos.

Porque na época era legal, foi o Flávio que trouxe, aí não tinha data marcada, era quando o daime chegava, ai depois o Flávio tinha um canal com a Sandra, da Barquinha, do Rio Branco, juntava uma grana, mandava a grana e ela mandava um daime, agora fortíssimo, aí não tinha, quando chegava o daime, era uma felicidade. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR RENNER RAMOS DA SILVA, 2016)


Geralmente quando um grupo está se iniciando nos estudos espirituais da doutrina do Santo Daime e quando não há pessoas nesse grupo que tenham muita experiência da composição dos trabalhos, há uma busca tendo como referência modelos originários de igrejas ou grupos matrizes, na sua grande maioria, oriundos da floresta, ambiente originário da doutrina. Para se constituir uma igreja do Daime em alguma localidade, o grupo recebe alguém ou algumas pessoas experientes da doutrina, em forma de comitiva, que realizam trabalhos passando os ensinamentos da composição desses trabalhos, que enfatizam principalmente a maneira correta da execução dos hinos, das preces2, do bailado3, da forma estrutural e da disposição dos adeptos no salão e condução do rito. Também alguns adeptos do grupo iniciante vão conhecer essas matrizes em sua região original, no caso do Santo Daime, na floresta Amazônica.

Não sendo diferente de outras localidades em que a doutrina se estabeleceu, Canoa Quebrada também recebeu a visita de algumas comitivas. Um desses grupos chegou ao Ceará em 1997 e era composto por Maurílio Reis (dirigente da colônia cinco mil) e sua esposa, Maria das Neves (filha do padrinho Sebastião Mota de Melo), Ronaldo e Manoel Moraes, todos com histórico de parentesco ou convivência com os grupos iniciais da floresta. Na verdade, essa visita foi uma passagem do grupo pelo Ceará, Maurílio e Neves estavam seguindo em viagem e trouxeram Manoel Moraes de volta ao Ceará depois de 50 anos de sua partida para trabalhar nos seringais. Somente Ronaldo, músico, ficou mais alguns dias no Ceará para passar as melodias dos hinos para Carlito, que na época era o músico do grupo, além do toque do maracá4.

O ano anterior ele tinha vindo com senhor Manoel Moraes e o Ronaldo, na verdade não veio nem pra cá não, foi pra Fortaleza, que o senhor Manoel Moraes tinha a família dele que fazia 50 anos que ele não via, ai ele pediu pra a Maurílio trazer, o Maurílio trouxe... (ENTREVISTA CONCEDIDA POR RENNER RAMOS DA SILVA, 2016).

Aí ele apareceu, um dia apareceu, a primeira vez foi em Fortaleza, em um apartamento que tinha em Aldeota, Maurílio, Neves, Senhor Manoel Moraes e Ronaldo. Maurílio e Neves estavam vindo do Japão e aí pagaram a viagem para Senhor Manoel Moraes para vir para o Ceará, porque esse Manoel Moraes fazia 50 anos que não vinha para o Ceará, tinha uns 70 na época, foi menino 18, 20 anos foi pro Rio Branco e numa época que conheceu o mestre Irineu, e depois que faleceu o mestre Irineu foi lá pra Colônia 5000, dizem que padrinho Sebastiao estava esperando ele na porta. O Ronaldo ele ficou um tempo, depois de 97, depois da primeira vez, ele ficou um mês e meio ou dois, ele ensinando o Carlito a tocar violão e a tocar maracá e ficava a tarde toda tocando e aprendendo, que para nós era novo, nós sabíamos que queria tomar daime, nessa época 94, 95, maneira dos trabalhos, era liberal pra caramba, nós não sabíamos cantar e o único que sabia cantar era o Flávio (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO, 2014).


A partir desse momento, este grupo que se reúne para realizar os trabalhos espirituais em Canoa Quebrada já pode se denominar como um “ponto” da doutrina, ou seja, um núcleo para os daimistas, embora não fosse ainda uma igreja.

Somente um ano depois, em 1998, já sabendo do grupo que tomava daime no Ceará, foi que Maurílio Reis veio com uma comitiva maior para abrir oficialmente os trabalhos em Canoa Quebrada e participar da Fundação da Igreja Flor da Canoa em 14 de março de 1998. Conforme depoimentos e a ata de fundação.

Em 98 vem Maurílio, com Manoel, Neves, Simeão, Valdeci, Cires Beijamar, do Mapiá, e Zé Márcio e Teresa, de Viçosa, Minas, da Igreja do Marcão. Aí eles que abriram a Flor da Canoa, nessa época já fardou Andres, argentino, deixou fardado ele, Carlito e Fernanda, tomando conta da história. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO, 2014)


Na data específica da fundação da Igreja é realizado o trabalho de cura, passando a ser feito anualmente esse mesmo trabalho no aniversário da Igreja. É escolhida uma diretoria e nomeada a Igreja, compromissos posteriores para criação do estatuto são confirmados, é o que consta na ata da fundação:

Aos 14 dias do mês de março de 1998, com as portas abertas, os presentes abaixo assinados se reúnem com a finalidade de louvar o soberano senhor Deus e criar o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Maria Gregório, entidade que tem como objetivos cura e benfeitoria espiritual através da doutrina do Santo Daime. Por consenso dos presentes, fui escolhido eu, Oscar Antonio Della Santa, para secretariar esta reunião, onde, depois de uma explicação dada por Maurílio Reis, os presentes escolheram como nome do centro “Flor da Canoa” e nomearam a seguinte diretoria: Presidente: Senhora Fernanda Farias Ponte; Vice-Presidente: Carlos Escribano; Tesoureiro: Renner Ramos da Silva; Segundo tesoureiro: Andrés Schuartzman; Secretário: Oscar Antonio Della Santa; Segundo secretário: Lilia de Carvalho Lindoso e como membros do conselho fiscal, Presidente: Marin Gonzales Alberto, Membros: Karl Heinz Krebs, Claudio Gondim, sendo debatida e aprovada esta ata, foi marcada uma reunião para discutir sobre a criação dos estatutos que será realizada no primeiro domingo do mês de abril de 1998. Depois de lida e aprovada, eu, Oscar Antonio Della Santa, redatei esta ata, que vai assinada por quem de direito (ATA DE FUNDAÇÃO DA IGREJA FLOR DA CANOA LAVRADA, 1998)


A Igreja Flor da Canoa é inaugurada, mas ainda se passam três anos se fazendo os trabalhos espirituais na residência dos membros, de forma itinerante. Em 2001, os membros adquirem um terreno à beira da praia, vizinho ao antigo cemitério de Canoa Quebrada. A construção dessa igreja dura em torno de um mês. Esta foi a primeira igreja onde os adeptos realizaram os rituais entre os anos de 2001 até 2008.

Este local foi marcado por diversos fatos que contribuíram posteriormente para a mudança de lugar. Segundo alguns adeptos e jornais locais19, por motivo aparente de perseguição de um membro da Igreja, no dia 30 de julho de 2006, o subtenente responsável pelo destacamento da região, invade a igreja, juntamente com outros policiais, sem ordem judicial e faz ameaças aos membros participantes acusando alguns de tráfico de drogas, relatando que a igreja servia de fachada.

Quando agente tava fazendo uma sessão e ele entrou dentro da sessão, passou a proferir palavras agressivas acusando de usuário de drogas, vagabundos e desocupados.(ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO LIMA DE SOUSA, 2016)

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No dia 5 de agosto de 2006, aconteceu um incidente que marcou o grupo, a igreja sofre um atentado em um momento em que havia pessoas dormindo nas instalações. Há uma tentativa de incendiar o local e como a coberta da igreja era em estilo de palhoça, o fogo se propagou deixando o telhado parcialmente destruído, além de ter sido aberta a chave do gás de cozinha do fogão, com risco de uma catástrofe maior.

Canoa Quebrada, assim como outros locais em que o turismo em massa chegava fortemente, não ficou isenta da grande exploração de imóveis e terrenos. Assim nos descreve Nascimento (2012), a respeito da urbanização do local:

Sua ocupação urbana ocorreu de forma desordenada resultante da implantação de loteamentos privados, da venda e ampliação de casas e do alto adensamento de construções que oportunizaram condições de novas ocupações e disputas pelo/no espaço (NASCIMENTO, 2012, p. 54).


Havia muitos estrangeiros que vinham para Canoa, tendo contato com a localidade alguns optavam em adquirir imóveis, seja para fixar residência, abrir pontos comerciais, pousadas, aumentando assim a especulação imobiliária em Canoa Quebrada. O local onde a igreja estava acabou sendo afetado por essa nova especulação fazendo que parte de seus arredores se tornasse procurado, mudando o panorama do local que antes era mais recluso, tornando-o com mais evidência. Somando-se a isto, o atentado ocorrido, fez com que os membros decidissem vender o terreno e comprar outro mais afastado da “badalação” da praia, inclusive para evitar a aproximação de pessoas unicamente interessadas no princípio psicoativo da bebida, em detrimento de seu significado religioso.

Assim, para a continuidade com tranquilidade dos trabalhos espirituais, foi escolhido um local um pouco mais afastado da entrada de Canoa Quebrada. Sobre essa mudança, Francisco Lima afirma:

Eu me lembro dos trabalhos quando eram feitos aqui na igreja da praia, era muita gente e muitos malucos, muita gente doida mesmo, tipo, vamo ali tem uns caras que tomam um chá e fumam maconha, e tal e tal. Hoje em dia como a igreja já é em outro lugar, mais afastado, não tem esse acesso tão fácil a esses tipos de seres que procuram essa viagem. Hoje os seres que vão são mais realmente que estão procurando a luz, ainda assim vão alguns, mas mais irmãos procurando a luz, vamo dizer assim, quando a igreja era aqui na praia era terrores, dou testemunho de muitas curas, mas também de muitas passagens. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO LIMA DE SOUSA, 2016)


Segundo Percília Matos da Silva, o fundador da doutrina, Mestre Irineu, dizia que o daime curava tudo, só não curava sentença, ou seja, algum desígnio superior ou o próprio karma5 que o indivíduo tinha que passar nesse plano, para na próxima existência estar em uma condição melhor. Ela afirma: “Dentro desse trabalho  não se cura é sentença, porque a sentença  vem de Deus. Têm doenças, tipos de sofrimento, que não tem cura, a pessoa tem de passar. Mas fora disso, tudo tem cura, dentro da obediência que todos devemos ter a Deus, nosso criador”.6

Não somente baseando-se na cura de males físicos, mas sim de muitos males espirituais, o daime traria a cura para a doença, mas a cura viria muitas vezes através do autoconhecimento, conhecer o porquê de ter adquirido aquela enfermidade, como a adquiriu, o que fazer para obter a cura, quando a cura for do merecimento do indivíduo.

Para os adeptos essa seria a cura pelo entendimento, muitas vezes se conformando com sua condição, esperando uma cura além, a própria salvação. Um exemplo que marca esse processo foi de um antigo adepto da doutrina residente no Acre, chamado João Pedro. Relatos dão conta de que esse adepto sofria de uma enfermidade nas pernas diagnosticada como elefantíase; testemunhos outros chamavam a enfermidade de “pé-de-bode”. Em sua experiência com o Daime, teria entrado em contato com a Virgem Soberana Mãe e sido interrogado por ela, se queria a cura para o seu mal físico ou se queria a sua salvação, João Pedro, teria escolhido a segunda opção, a sua salvação7. João Pedro em sua trajetória na doutrina, recebeu um hinário que é cantado em trabalhos voltados para as curas.

Os processos de curas foram acontecendo concomitantemente com a formação do grupo em Canoa Quebrada. Talvez isso tenha sido o que mais chamou atenção das pessoas que testemunhavam essa mudança na vida dos membros que frequentavam, pois antes do Daime, a grande maioria dos adeptos viviam em condições difíceis, relacionadas principalmente em vidas desregradas e sem perspectivas, como abuso de álcool e drogas, como relatam nos depoimentos:

Dou testemunho de várias curas, inclusive de mim mesmo, primeiro, e mais de várias pessoas que se curaram com a santa bebida (...) Como eu já conhecia os meninos do mundo da ilusão, da loucura, comecei a ver a mudança dessas pessoas e nós éramos pessoas amigas e que fazíamos comédia juntas, mas assim, comecei a ver mudanças, finado Edilson, Renner, Beto, eles era que eu tinha mais contato antes do daime, pós daime veio outros, o principal era o finado Edilson que era um irmão amigo nosso, muito doido, querido por todos e eu via ele mudando, perguntava o que estava acontecendo, e ele falava do daime e dizia: tu tem que ir lá, Lima, pra ver, ele esperava sair uma ação que ele tinha de uma grana e ele dizia que, quando saísse, eram os planos dele parar de vez as comédias e aplumar na vida, e ele estava aplumando mesmo (ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO LIMA DE SOUSA, 2016)


Os relatos sobre curas pessoais que mudaram a vida desses adeptos continuam conforme afirma Marin Gonzales Alberto, o “Beto Chileno”:

Sou feliz demais dentro dessa doutrina, me mostrou muitas coisas, me fez entender muitas coisas, assim, antes de entrar estava quase morrendo, usava muita cocaína, muito álcool, estava na babilônia total, eu nunca imaginei um dia que poderia estar na situação que estou agora, eu nem imaginei, sabe quando tu tá lá pra trás, aí o mestre é poderoso e acabei aqui. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR MARIN GONZALES ALBERTO, 2016)


Alguns desses processos de cura envolvem diversas maneiras de “purgação” ou “purificações” chamadas de “limpezas”:

Aí quando eu chego com o daime, daí eu tenho a limpeza, fazia 3 meses que tinha tomado pela primeira vez, aí eu fiz essa viagem e chegando em minha casa vomitei um negócio com sangue assim, aí passei uma semana que quase que ia e que não ia, e com três garrafinhas dessas de vinhos de ¾ de daime da Barquinha, isso foi em dia que me aconteceu foi 1º de junho” (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANDO, 2014).


Havia convivência entre os adeptos antes de chegar o Santo Daime em Canoa Quebrada, fazendo que houvesse uma abertura entre eles para transmitir essa prática de cura.

Acho que eu tomei em 95, depois de um ano que eles tavam tomando, eu tomei, na época a gente tava fumando pedra, detonando mesmo, cheirando, a gente cheirava demais, depois a gente tava fumando pedra, aí o José começou a dizer, Renner, negócio de fumar pedra, devia tomar era daime” (ENTREVISTA CONCEDIDA POR RENNER RAMOS DA SILVA, 2016)


É importante salientar que existem visões distintas em relação a esse processo de cura, principalmente quando é voltado para reabilitação de dependentes químicos. Pelo fato de esses grupos fazerem o uso da ayahuasca e a mesma ser uma substância psicoativa, existem alusões de que o adepto estaria substituindo “uma droga por outra”; e que pelo fato de a ayahuasca ser usada em um contexto religioso, estaria assim o adepto fazendo uso de uma “droga” socialmente aceita.

Para refletir sobre isso, precisamos considerar o contexto envolvido na experiência dos usos das substâncias e do ambiente em que essas práticas estão inseridas, principalmente se tratando de fatores singulares das substâncias psicoativas. Como já foi dito anteriormente, a ayahuasca é descrita como uma substância enteógena, seu uso está milenarmente ligado a diferenciados propósitos, em sua maioria espirituais, em ambientes propícios para essa experiência.

Para tal discussão, assim como já citamos no início da pesquisa, o médico Norman Zinberg, vai expor essa distinção referindo-se ao uso “controlado” e “compulsivo” de substâncias psicoativas. O uso controlado teria baixos custos sociais, por outro lado, o uso compulsivo seria disfuncional e intenso. Assim, teoricamente, o uso da ayahuasca no culto do Santo Daime vai se assemelhar a esse uso “controlado” de substâncias psicoativas, principalmente porque é regido por regras, valores e padrões de comportamento veiculados por uma subcultura desenvolvida entre grupos de usuários, definindo o que será o uso aceitável, limitado a meios físicos e sociais, estruturando os padrões de comportamento antes, durante e depois do uso e respaldando as obrigações e relações que aos usuários mantêm na esfera social.

O enquadramento de uma substância como enteógena vai ser definido principalmente pela natureza da substância (se seu uso tradicional é voltado ou já foi para esse fim), pelo contexto social de seu uso (quando temos uma realidade religiosa, sagrada ou até tradicional de seu uso) e seus efeitos, sensações no organismo do indivíduo. O simples fato de o indivíduo fazer uso de algum psicoativo não nos pode dar margem para generalizar que todos os usos são iguais e pertencentes ao mesmo contexto, que a mudança, troca ou substituição, na verdade, em resumo não irá fazer tanta diferenciação. Precisamos observar que nessas “trocas” ou “substituições” estão inclusas mudanças no modo de viver de cada indivíduo, valores morais, direcionamento e ajustes sociais e comportamentais. Afinal de contas, não seria suficiente para a dependência de um indivíduo viciado em uma substância como a cocaína a substituição pela ayahuasca, como já enfatizamos, são efeitos diferentes, além do mais, considerando que o daime não é só a substância, mas sim todo o “pacote” contendo direcionamentos sociais, morais, comportamentais, esses últimos sendo os diferenciais maiores.

Ao analisarmos esses fatores percebemos, distinções que variam em relação ao uso dos psicoativos que podem ser compostas por experiências salutares programadas em dia e horários determinados, em busca do autoconhecimento e em locais seguros para uma experiência tranquila, segura e harmoniosa em contraste com o uso desregrado, patológico de substâncias que comprovadamente causam dependência.

Canoa Quebrada com seu forte impacto turístico crescente atrai uma diversidade de pessoas por diversos fatores, uma beleza exótica com suas praias e falésias naturais, uma ampla rede turística, provida de uma gama de hotéis e pousadas, guias, passeios e atrações para os visitantes. Com toda essa rotatividade de pessoas e com a igreja já estabelecida, aumenta o número de pessoas, em sua maioria estrangeiros, que se interessam em conhecer o Santo Daime e participar de um trabalho espiritual. Muitas dessas pessoas já tinham ouvido falar no Santo Daime, outras não, e esse fluxo constante acaba aumentando consideravelmente o número de pessoas a conhecer a doutrina.

A igreja Flor da Canoa passa a ser, por esse fluxo de pessoas, um ponto de difusão da doutrina do Santo Daime, conforme relatam os adeptos:

Aqui tomou muito daime, os estrangeiros, movimento de pessoas que passam ficam um tempo e vão embora, agora ultimamente que tivemos uma permanência de alguns soldados neste batalhão que estão firmes, porque aqui passou muita gente, muitos aprenderam aqui colocaram igrejas em outro canto, guitarristas músicos, que passaram e aprenderam a tocar violão aqui e estão com igrejas em outros lugares, já passaram israelitas, indianos, japoneses, chineses, iraquianos, turcos, todo tipo de gente, gringos da Europa... nativos tinham também, vieram vários nativos, mas alguns se fardaram aqui e foram embora para Europa com as gringas, com eurocard, vários foram pra Holanda, Jamaica, Argentina, tem gente que ficam um tempo, 3 ou 4 meses, 1 ano e vão embora. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR MARIN GONZALES ALBERTO, 2016)

Então o trabalho do grupo daqui da flor da canoa, eu já vi isso na miração, é que haja sempre o daime, e que aqui é um ponto de expansão, já diferentes de outros grupos, que formam aqueles grupos fechados, aqui é sempre rotativo, aqui colheu muita gente da doutrina, são mais ou menos 600 trabalhos registrados no livro de ponto já deve ter mais ou menos isso. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO LIMA DE SOUSA, 2016)


Se tratando de expansão, no que diz respeito a doutrina do Santo Daime no estado do Ceará, precisamente através desse primeiro grupo formado em Canoa Quebrada, outros grupos irão surgir, não de maneira uniforme, mas com influências, principalmente com a saída de algum ou alguns membros desse grupo. Citamos como exemplo Hugo Sousa, que já tinha uma experiência anterior com a ayahuasca e esteve junto do grupo de Canoa Quebrada. Há uma cisão no grupo e Hugo Sousa junto com alguns adeptos deixam de frequentar a igreja em Canoa Quebrada e passam a se reunir e fazer os trabalhos espirituais na residência de Hugo, no sítio Tanques, localizado em Cascavel-CE, posteriormente batizado como Centro Terra da Luz em 2001.  um desenvolvimento nesse grupo, outros adeptos se iniciam nos trabalhos espirituais e passam a frequentar o centro. Por consenso dos integrantes é decido adquirir um terreno para construção do templo, pois necessitava-se de um espaço maior para atender o número crescente de pessoas a maioria vindos da capital. O grupo muda o local dos trabalhos da residência de Hugo Sousa para este terreno adquirido em Guanacés, distrito de Cascavel-CE, no terreno enquanto a igreja é construída, os trabalhos são realizados na casa de José Erivan Bezerra de Oliveira, sociólogo, que passa a dirigir os trabalhos espirituais, a irmandade re-inaugura a igreja em abril de 2007, mudando seu nome para CEFLUJOPE – Centro Eclético da Fluente Luz Universal João Pedro - Céu da Flor do Cajueiro.

1 Antônio Geraldo foi discípulo de Daniel Pereira de Matos, fundador do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, conhecida como Barquinha, uma das três maiores religiões ayahuasqueiras.

2 Orações cristãs, leituras espíritas e preces de abertura e encerramento dos trabalhos

3 Espécie de dança rítmica que é feita nos hinários de maior duração, geralmente nas datas festivas da doutrina, São João, São Pedro, Santo Antônio, etc.

4 Instrumento condutor do trabalho, muito usado em rituais indígenas. Na doutrina, geralmente feito de lata com esferas de metal em seu interior.

5 Expressão usada em algumas doutrinas espiritualistas que se refere as ações do indivíduo ao longo de sua vida, e as consequências causadas por elas nessa vida ou em outra encarnação.

6 Conforme depoimento em: www.santodaime.org/site/religiao-da-floresta/discipulos/percilha-matos- da-silva  Acesso em 07 de junho de 2014

7 Conforme depoimentos em: http://afamiliajuramidam.org/os_companheiros/joao_pedro.htm . Acesso em 7 jun. 2014.

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