domingo, 19 de novembro de 2023

INTRODUÇÃO


A doutrina do Santo Daime foi criada em 1930 pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, no estado do Acre. Em seus trabalhos espirituais é utilizada a bebida indígena Ayahuasca, como veículo de expansão da consciência. A partir da década de 70, o culto começa a se expandir primeiramente pela região, depois atravessando fronteiras estaduais e até nacionais. A pesquisa trata do surgimento da primeira Igreja da doutrina do Santo Daime no Ceará, A Igreja Flor da Canoa, em Canoa Quebrada – Aracati – Ceará, no ano de 1998. Para a realização do trabalho usamos documentos como ata de instalação e posse de diretoria, fotografias, periódicos e depoimentos orais através de entrevistas com membros que fizeram parte do grupo fundador e posterior a fundação.

Discorremos a formação do primeiro grupo e sua continuidade, seu aprendizado e sua trajetória até o estabelecimento da primeira igreja do estado. Incitamos a reflexão de Canoa Quebrada como local propício para o surgimento da doutrina, principalmente através de seu ambiente em formação aberto para o novo, sendo um local multicultural, permeado por estrangeiros residentes e muitos em passagem. A mudança no sentido de vida para os adeptos através dessa vertente espiritual, os processos de “curas” físicas ou espirituais são enfatizadas na conclusão do trabalho.

A doutrina do Santo Daime foi fundada no início da década de 30, pelo maranhense, neto de escravos, Raimundo Irineu Serra, no estado do Acre. Era um período de migração nordestina, no qual a região recebia pessoas para trabalhar nos seringais, no ciclo da borracha, embora não fosse mais o pico da produção gumífera. Nessa leva de trabalhadores, está inserido Irineu, que, assim como muitos outros nordestinos, foi em busca de uma nova vida. Alguns viam como a oportunidade de ascender economicamente em busca desse “eldorado” amazônico.

Irineu - conhecido posteriormente pelos adeptos da doutrina como “Mestre Irineu” - tem vida multifacetada, passando por migrante nordestino, seringueiro, guarda da comissão de limites territoriais, curandeiro, vegetalista e mestre. Em sua trajetória, conhece um dos rituais existentes com a bebida indígena ayahuasca, já na versão adaptada à cultura dos caboclos amazônicos. Irineu tem sua experiência com a bebida e daí inicia seu estudo espiritual, moldando e inserindo práticas, até concluir a estruturação da doutrina do Santo Daime. Com o passar de alguns anos, esse conhecimento é transmitido e a doutrina se expande pelo Brasil e pelo exterior.

O interesse por tal objeto de pesquisa surgiu em meados de 2006, quando tive oportunidade de participar de um trabalho do Santo Daime, como são conhecidos os rituais. Vale ressaltar que o meu interesse já existia anteriormente, por me mostrar disposto a conhecer esses cultos que relacionam substâncias psicoativas e religiosidade. Minha intenção inicial era conhecer a UDV (Centro Espírita Beneficente União do Vegetal), que, juntamente com a Barquinha e o Santo Daime, compõem as três religiões brasileiras que consagram a ayahuasca em seus ritos, cada vertente em seu contexto particular. Mas, por conta dos critérios para receber visitantes na UDV serem mais rígidos e por ter conhecido um membro fardado1 do Santo Daime, a visita para participar do trabalho do Santo Daime se mostrou mais acessível.

Frequentei, junto de minha família, várias religiões desde muito cedo, muitas vezes esperançoso em curas relacionadas a problemas de saúde. Catolicismo e Protestantismo, em algumas vertentes, foram as que mais frequentamos. Com o tempo veio a adolescência e muitas perguntas, inclusive em relação àquelas religiões. Não encontrando respostas, houve um distanciamento das mesmas. Muito tempo passa e somente, em 30 de maio de 2006, volto a frequentar um culto espiritual, quando tive a oportunidade de participar de um trabalho de concentração2 em Guanacés, pequena localidade do município de Cascavel, Ceará, onde escrevi, em algumas linhas, o que esperava daquele momento: “Então chegou o grande dia, o grande momento. Algo que pode mudar minha vida estará prestes a acontecer. Não estou muito nervoso, nem um pouco ansioso, espero apenas sentir, perceber, abrir os olhos da percepção. Neste momento estou sentado na rede, na varanda, batalhando para escrever essas linhas, pois falta luz para enxergar, vejo então que outras pessoas que já conhecia estão aqui também”.

Depois dessa experiência, passo a frequentar regularmente o culto, até me iniciar como membro fardado no trabalho de hinário3 do Dia dos Pais, em agosto de 2007. A partir daí, inicio meus estudos espirituais no culto, participando de vários trabalhos que compõem a doutrina, que são: Concentração, Serviços de Hinário, Missa, Trabalho de Cura, Trabalho de Mesa Branca, Feitio, etc. Com a prática nos estudos da doutrina, também inicio o interesse na literatura acadêmica sobre o tema, adquirindo livros, revistas, documentos referentes ao objeto específico e outros, analisando, de forma geral, durante a história, sobre os cultos que trabalham nessa perspectiva.

Com a necessidade de um tema para a monografia, optei em fazer uma análise do Daime no estado do Ceará. Como se estabeleceu, seu surgimento, como foi transmitido, sua recepção pelos adeptos, o desenrolar do objeto, com a fundação da Igreja Flor da Canoa no ano de 1998.

A doutrina do Santo daime já está presente em vários estados do Brasil e em outros países como: Holanda, Espanha, México, Estados Unidos, entre outros. Desde finais do século XX, com a aproximação da virada do milênio e o surgimento do movimento universal caracterizado como “Nova Era”, se registra um aumento de visibilidade das doutrinas filosóficas, esotéricas, ocultistas, dentre as quais o Santo Daime desponta. Mas, apesar disso, os cultos que envolvem o uso de psicoativos ainda carregam, aos olhos da sociedade, a carga pejorativa, principalmente pela ingestão dos seus sacramentos, a ayahuasca. Com esta pesquisa, queremos oferecer uma visão particular sobre a doutrina, reconhecendo-a como “transformadora”, pois os adeptos passam a optar por uma reforma íntima, pela postura ética com seus semelhantes, tendo como valores a harmonia, o amor, a verdade e a justiça. Considero que a doutrina em si é de grande benefício social para o convívio entre todos, sejam adeptos ou não.

No que diz respeito às produções acadêmicas sobre o objeto de estudo, podemos perceber que são variadas. Hoje encontramos produções de maior quantidade nas áreas da antropologia, da sociologia, da história, da farmácia, da biologia, da psicologia, entre outras.

Apesar de o Santo Daime se estabelecer no Brasil na década de 30, as primeiras pesquisas acadêmicas sobre o objeto datam do início da década de 80. Embora haja boas pesquisas, no que tange à introdução da doutrina, em âmbito nacional; no que diz respeito ao estado do Ceará, verifica-se uma lacuna; portanto, nossa pesquisa quer colaborar para a redução dessa carência. O fato de participar do movimento daimista facilitou a obtenção das fontes principais da pesquisa. Além de conhecer previamente certas particularidades, também tive fácil acesso às atas, depoimentos, entre outros documentos. Nas condições propostas, podemos perceber que a pesquisa se apresentou viável, pois o acesso às fontes se mostrou com facilidade.

Com o estudo das pesquisas sobre o objeto já existentes, a falta de pesquisas referente ao estado do Ceará, como dito, torna-se evidente. Quando se aborda o surgimento da doutrina do Santo Daime, dificilmente é analisado o impacto do surgimento em determinado local, a constituição de uma igreja, suas particularidades, caracterizando assim a pesquisa com uma temática atual e ainda não abordada.

Entre as referências bibliográficas sobre o Santo Daime que nos servirão de base, algumas merecem menção mais detida. No seu livro Guiado pela Lua - Xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do Santo Daime, Edward MacRae analisa o início do culto do Santo Daime, começando pelo xamanismo na Amazônia Ocidental, onde a bebida ayahuasca, em seu contexto de origem, era usada por tribos indígenas, até sua ressignificação através dos caboclos amazônicos, população que, em sua maioria, se formou com o advento do ciclo da borracha no início do século XX, analisando os valores que a norteiam e os tipos de controle social que exerce sobre seus adeptos. O autor aborda a relação entre as substâncias psicoativas, o usuário e o meio social onde ele se insere, levando em consideração: a substância psicoativa e sua atuação na fisiologia do corpo humano; o set, estado psicológico do indivíduo no momento do uso da substância, incluindo- se aí a estrutura de sua personalidade e expectativas a respeito dos efeitos da substância; e o setting, meio físico, social e cultural onde ocorre o uso.

Segundo o autor, o trabalho procura inicialmente estabelecer o contexto sociocultural do uso da ayahuasca nos rituais do Santo Daime. Tomando como referência o médico Norman Zinberg, MacRae faz uma distinção referindo-se ao uso “controlado” e “compulsivo” de substâncias psicoativas. Para Zinberg, o uso controlado teria baixos custos sociais; por outro lado, o uso compulsivo seria disfuncional e intenso (ZINBERG, 1987, p. 17). Assim, tal obra nos auxiliou a entender que o uso da ayahuasca no culto do santo daime vai se assemelhar a esse uso “controlado” de substâncias psicoativas, principalmente porque é regido por regras, valores e padrões de comportamento veiculados por uma subcultura desenvolvida entre grupos de usuários, definindo o que será o uso aceitável, limitado a meios físicos e sociais, estruturando os padrões de comportamento antes, durante e depois do uso e respaldando as obrigações e relações que os usuários mantêm na esfera social.

No livro Busca do Graal Brasileiro, a doutrina do Santo Daime, de Débora Pereira Bolsanello, a autora apresenta como objetivo: “enfocar, sobretudo, os aspectos ritualísticos do uso da Ayahuasca dentro dos moldes concebidos pela doutrina do Santo Daime” (BOLSANELLO, 1995, p. 12). Essa autora apresenta uma visão do perfil histórico e econômico do Daime, de forma simples, focando o universo que cerca a ingestão da bebida, sua produção, técnicas de uso e seus fins, o espaço ritualístico, a função dos adeptos, vestimentas, a simbologia usada, regulamentos comportamentais para comungar a bebida, as relações nos ritos e os estímulos sensoriais como a música e a dança. A autora toma como metodologia a análise do conjunto de soluções estéticas, simbólicas, éticas e políticas, pretendendo observar o ecletismo típico da cultura popular brasileira e as formas que toma nos rituais daimistas. Como base para a pesquisa de campo, foi trabalhado o CEFLURG (Centro Eclético de Fluente Luz Universal Rita Gregório), situado em Visconde de Mauá, Rio de Janeiro.

Em seu trabalho, Santo Daime, um sacramento cristão em formação, a autora Isabela Oliveira, Doutora em História Cultural (UnB), analisa a constituição do significado atual da bebida dentro do Santo Daime, compreendendo a ressignificação da ayahuasca como um evento que se insere dentro do processo dialético e histórico de construção social de significados, partindo da ideia de religião enquanto fenômeno social em constante formação. Para avaliar como se deu esse processo, é feita uma breve análise do conteúdo de narrativas orais colhidas pela autora. A autora vai salientar que, durante a época de Mestre Irineu, em que este estava presente no comando da doutrina, “os símbolos e as ações rituais foram constituídos, permitindo, por exemplo, uma associação direta do consumo da bebida com o universo cristão” (OLIVEIRA, 2009, p. 403). Entre esses símbolos são de destaque o cruzeiro (Cruz de Caravaca), a associação do sinal da cruz no ato de ingestão da bebida, as preces cristãs (Pai-Nosso, Ave Maria, Salve Rainha) por exemplo. Essa ideia de analisar a religião enquanto fenômeno social em constante formação auxiliou nosso trabalho para entendermos a construção de um rito, que molda e agrega práticas inseridas conforme os agentes que fazem parte desse contexto.

Para se analisar a Doutrina do Santo Daime no Ceará, trabalhamos com documentos referentes à Igreja Flor da Canoa, situada na praia de Canoa Quebrada, Aracati. Como fontes primárias, selecionamos atas de instalação, eleição e posse de diretoria, além da realização de entrevistas, depoimentos com membros fundadores. Como fontes secundárias, foram usadas fotografias de época, do período de 1998 a 2008, além de periódicos locais.Com o acesso a essas fontes, pretendemos reunir material que ampare as indagações sobre o processo de instalação dessa igreja no estado, seu surgimento, sua adesão pelos adeptos e a comunidade local.

Selecionamos para entrevistas os adeptos que fizeram parte anteriormente e posteriormente à fundação, em um total de 7 entrevistados. Para concretizar esse processo, foram feitos estudos de campo em Canoa Quebrada (Aracati – CE) e em Fortaleza - CE, colhendo depoimentos e entrevistas, além de documentos com esses adeptos.

Em vista da utilização dos depoimentos e entrevistas realizadas com adeptos e ex-adeptos da doutrina, a metodologia da história oral tornou-se fundamental para a coleta de tais registros e sua posterior leitura e problematização. A história oral não configura prática nova no trabalho dos historiadores contemporâneos e seu desenvolvimento muito contribuiu para o aumento dos estudos sobre vários grupos sociais. A “apreensão de narrativas feitas por meio do uso de meios eletrônicos e destinada a recolher testemunhos, promover análises de processos sociais do presente e facilitar o conhecimento do meio imediato”, como Meihy (2002) resume, tal metodologia, fez crescer os suportes empíricos acerca de grupos específicos sobre os quais os registros eram escassos.

É ainda Meihy que salienta a importância desses tipos de trabalho do historiador:

A história oral responde à necessidade de preenchimento de espaços capazes de dar sentido a uma cultura explicativa dos atos sociais vistos pelas pessoas que herdam os dilemas e as benesses da vida no presente. Sua versão do processo, porém, deve ser um legado de domínio público. (MEIHY, 2002, p.20)


Por expandir e completar uma tradição historiográfica centrada em pesquisas com documentos oficiais, hoje a história oral é fundamental nas discussões sobre tendências da história contemporânea. Ao garantir sentido social à vida de depoentes e leitores, essa metodologia faz com que essas pessoas se sintam parte do contexto histórico em que vivem, como agentes produtores da história. Assim, a metodologia foi fundamental para ligar toda a rede de depoimentos que enfatizavam a construção do contexto geral daquele lugar, daquele período, daquela memória coletiva.

No primeiro capítulo, apresento uma análise do tema em um âmbito geral, iniciando discorrendo, de forma breve, sobre a cultura da ayahuasca, sua composição e seus princípios farmacológicos, sua chegada a Amazônia, seus usos específicos pelos povos indígenas, seus rituais, suas intenções e etc. Nessa trajetória, enfatizamos a descoberta da ayahuasca pela cultura ocidental, a adoção de elementos cristãos, o surgimento dos curandeiros ou vegetalistas e a aproximação do caboclo amazônico com essas práticas, ou seja, a transição de um xamanismo indígena para um xamanismo mestiço. Nesse momento, ao se falar sobre o surgimento da doutrina, focalizamos um pouco a trajetória da vida do seu fundador, Raimundo Irineu Serra, o contexto histórico e econômico do ciclo da borracha, que foi uma forte influência para a sua migração do Maranhão para o Acre. O período em que enfatizamos a trajetória desse senhor é descrito com algumas particularidades de sua vida, que se confunde com a própria composição da doutrina, já que todas essas experiências espirituais estão contidas em 132 hinos (mensagens) recebidos através de seus estudos com essa bebida sacramental, que se inicia na década de 30, até seu falecimento em 1971.

No segundo capítulo, abordaremos a composição e o surgimento da doutrina no Ceará, precisamente em Canoa Quebrada, com a fundação da primeira Igreja, Flor da Canoa, em 1998. Antes disso, discorremos sobre a história de Canoa Quebrada, sua fundação, dos primórdios de uma antiga vila de pescadores até tornar-se um dos pontos turísticos mais visitados do estado. A calmaria “descoberta” pelos primeiros visitantes, o encontro do local paradisíaco por aquelas pessoas que buscavam paz e tranquilidade e a presença de um povo nativo acolhedor foi de bastante importância para tornar maior a empatia dos estrangeiros com esse local e o aporte dos ideais alternativos contraculturais que fizeram Canoa Quebrada ser conhecida como a praia dos hippies.

No segundo tópico, abordamos a constituição do Santo Daime em Canoa Quebrada, com o primeiro grupo que se reuniu em 1994 e passou a se reunir regularmente, compondo os trabalhos espirituais, agrupando pessoas, até a fundação da igreja em 1998. Tratamos de análises posteriores à fundação da igreja, mudanças de local do culto por alguns fatores específicos, dissipação de alguns membros, inclusive pela conceituação de Canoa Quebrada como um ponto de passagem de pessoas, pelo turismo, além da adesão e curas dos adeptos da doutrina.


1Indivíduo que é iniciado no trabalho espiritual, que passa a ter um compromisso com a doutrina de frequência nos trabalhos.

2Trabalho espiritual do Santo Daime que acontece nos dias 15 e 30 de cada mês. O ritual dura em média 4 horas, os participantes cantam hinos com momentos de orações e uma pausa meditativa chamada de concentração. 

3O Trabalho de hinário já tem um caráter mais festivo, é bailado, mais longo, chegando a durar em torno de 12 horas.


A DOUTRINA DO SANTO DAIME

 

A ayahuasca, caapi ou yagé, é uma bebida enteógena1 milenar de origem Inca. Supõe-se que sua chegada à Amazônia se deu devido à invasão espanhola no continente, durante a qual alguns remanescentes incaicos teriam fugido para a Amazônia e posteriormente difundido esse conhecimento nessa região. Afirma Bolsanello: “Conta-se quem, com a invasão espanhola, o nobre Inca Ayahuasca refugia-se em Machu Pichu e o chá difunde-se no Peru, Bolívia e Acre. A bebida ayahuasca teria entrado no Brasil via migração de tribos fronteiriças” (BOLSANELLO, 1995, p.80).

A bebida é originada pela decocção de duas plantas nativas da região, o cipó (Banisteriopsis Caapi) e a folha (Psycotria Viridis). Vale salientar que algumas tribos indígenas acrescentam outras espécies desses vegetais, conforme o tipo de efeito desejado. São inúmeros os vegetais misturados na bebida das mais de 50 tribos que a consomem, tornando-se quase impossível nosso conhecimento detalhado sobre as fórmulas reais do chá feito pelos índios. (BOLSANELLO, 1995, p.22, 23).

Para essas tribos indígenas, a ayahuasca é detentora de um “saber” que é transmitido através de sua ingestão e de ritos específicos variantes de cada tribo, e é a figura do xamã que tem o papel de interpretar e desvendar os mistérios das visões proporcionadas pelo ritual e repassá-los para o restante da tribo.

Em algumas tribos, somente os xamãs podem beber a ayahuasca; em outras, o mesmo é o responsável pela iniciação dos mais novos; em algumas, o uso é coletivo a toda a tribo. A maioria das práticas ritualísticas das tribos é acompanhada de determinadas exigências que envolvem o corpo: abstinência em relações sexuais, dietas alimentares e isolamento são algumas delas. A ayahuasca para as tribos é usada para buscar curas físicas e psíquicas, como métodos de adivinhação sobre caça e até exploração de espaços geográficos com o “voo xamanico”. Além do uso da bebida feita pelos indígenas, depois de um certo tempo, essa cultura se estende ao caboclo amazônico, formando um novo grupo que irá usufruir dessas práticas. Conforme descreve Oliveira (2006, p.32):

No contato dessas tribos com as populações caboclas da Amazônia – peruana, boliviana, colombiana e brasileira – surge um “novo xamã” representado pela figura do “curandeiro” ou “vegetalista”, que iniciado por um xamã indígena, aprende o preparo do chá e utiliza-o em uma práxis mais urbana, voltada na maior parte das vezes para seu aspecto medicinal e para a comunicação com o mundo animal, vegetal e mineral.


No Brasil, essa “formação” de curandeiros acontece principalmente através da migração, no período do advento da borracha, em que várias pessoas de todo o país, principalmente nordestinos, se mudam para a região da Amazônia, dentro desse fluxo migratório, com esperança de trabalhar nos seringais. Todo esse trabalho de extração necessitava de grande mão-de-obra, contingente esse que não existia na região, fazendo assim o governo e os investidores internacionais criarem toda uma estrutura de propaganda para “recrutar” novos trabalhadores para a extração. Com a borracha se tornando matéria-prima, principalmente a partir do século XIX nos Estados Unidos e na Europa, houve financiamento por parte de grupos econômicos internacionais, investindo nas casas aviadoras de Belém e Manaus, com o intuito de recrutar mão-de-obra (D’ARAÚJO, M.C.S. 1992, p.33). Assim, criou-se uma campanha incentivada por esses órgãos para a migração desses trabalhadores, que convertia a floresta em uma espécie de eldorado amazônico, uma nova opção de vida e um novo campo a ser desbravado, tendo a atividade gumífera como a salvação dos problemas econômicos, incluindo nesse panorama no imaginário do nordestino a imagem da Amazônia como o paraíso.

Muitos desses seringueiros procuraram as práticas “vegetalistas” em busca de cura para determinados males. Segundo o antropólogo Edward MacRae (1992, p.30), “Esse xamanismo mestiço é herdeiro direto do xamanismo indígena, cujos segredos foram aprendidos pelos seringueiros, que viviam isolados da sociedade ocidental e tinham de se valer dos conhecimentos médicos dos indígenas”

A bagagem cultural e os elementos simbólicos trazidos pelo nordestino, foram impactantes para a formação de uma nova estrutura social amazonense. Sobre a importância do nordestino e sua presença na Amazônia afirma Benchimol (2009):

A multidiversidade cultural e humana da região saiu enriquecida, pois a sua presença muito contribuiu para o abrasileiramento da Amazônia, influindo profundamente nos nossos hábitos, costumes, culinária, falas, danças, canções, folclore e lendas. Contribuições essas que estão, hoje, definitivamente incorporadas e fazem parte integrante da cultura, tradição e herança regional (BENCHIMOL, 2009, p. 169).


Dessa transição do xamanismo indígena para o xamanismo mestiço (curandeiros ou vegetalistas) surge uma (re) significação do uso da ayahuasca. A bagagem cultural desses novos seringueiros incluídas dentro dessas práticas, com a introdução de elementos urbanos e ocidentais, foi um fator contribuiu para essa ressignificação. É nesse outro significado que a doutrina do Santo Daime vai se inserir. Seu fundador, Raimundo Irineu Serra, se transfere do Maranhão para o Amazonas, por volta de 1912. Nascido em 15 de dezembro de 1890, Mestre Irineu, como ficou conhecido, trabalhou na seringa da região de Xapuri e posteriormente em Brasiléia, recebendo um convite para trabalhar na Comissão de Limites, órgão que era responsável em delimitar as fronteiras do Brasil com o Peru e a Bolívia. Neste período, Irineu, pela primeira vez, tem contato com a bebida ayahuasca, sendo apresentado a ela através de Antonio Costa, um conterrâneo maranhense que o levou em uma sessão com um ayahuasqueiro conhecido como Don Crescencio Pizango.(MACRAE, 1992).

Através desse contato, começam os estudos de Irineu, Antônio e André Costa com a ayahuasca, segundo afirma MacRae (1992, p. 62):

Embora aos detalhes disponíveis sejam parcos, há indicações de que, a partir de tais experiências, os irmãos Costa abriram um centro, na década de 20, chamado Círculo de Regeneração e Fé (CRF), instalado na cidade de Brasiléia, no Acre. Do grupo participava também Raimundo Irineu Serra.


Desses estudos, segundo a crença, Irineu passa a ter contato com uma entidade feminina denominada Clara, que passa a ser sua “tutora” espiritual. Em suas aparições, Clara vai prepará-lo para uma grande missão, na qual somente ele poderá receber os ensinamentos dessa senhora, posteriormente reconhecida como Nossa Senhora da Conceição ou Rainha da Floresta. Irineu se isola na mata, passando oito dias tomando a bebida e apenas se alimentando de macaxeira insossa e chá, e não podendo ter contato com mulheres principalmente. Esse período de afastamento vai ser de grande importância, pois é durante tal isolamento que Irineu vai ter a revelação da Doutrina do Santo Daime, inclusive receber seu primeiro hino, “Lua Branca”. Quanto a essa prática da recepção dos hinos, MacRae (1992) constata:

Os hinos são versos musicados simples, considerados como “recebidos” por uma pessoa através de captação divina. Apesar de inicialmente receber chamadas, melodias sem letra que executava assobiando, depois de certo tempo Irineu começou a receber os hinos que iriam compor seu hinário, O Cruzeiro, considerado a formulação básica da Doutrina do Santo Daime. Lá são descritas as mirações de Irineu, onde estariam presentes “seres divinos” da “corte celestial”, englobando entidades cristãs, indígenas e africanas (MACRAE, 1999, p.67)


A propósito da “miração” Brissac (1999) ressalta que não seria simplesmente uma sequência de visões, mas sim uma vivência sinestésica tocante à sensibilidade dos participantes do grupo, em dimensões que ele denomina como “estéticas” e “afetivo-sentimentais”, podendo totalizar a experiência além da visão e da audição, o tato, o olfato e o paladar, causando uma impressão muito forte a vivencia.

Irineu em 1930 se muda para a zona rural Vila Ivonete, em Rio Branco, agora estabelecendo trabalhos públicos com a ayahuasca, dois anos mais tarde, dando baixa como cabo da guarda florestal, para se dedicar aos trabalhos da doutrina. Dessa ressignificação das práticas vegetalistas com a ayahuasca, vai surgir a doutrina do Santo Daime, na qual Irineu passa a ser chamado de Mestre. No período de 1931 até 1945, Mestre Irineu irá inicialmente constituir a base doutrinária do culto com a constituição dos principais rituais e símbolos da doutrina.

Mestre Irineu teria frequentado em sua terra natal os rituais de Tambor de Mina, herdeiros dos cultos de vodum, da cultura gege, e tinha uma forte influência do catolicismo popular por parte materna, além de ter sido, membro de sociedades esotéricas, como o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, onde adquiriu conhecimentos oriundos da Europa.

Mas, somente a partir de 1946, quando a comunidade que acompanha Mestre Irineu se transfere para a colocação denominada Espalhado, que posteriormente ficará conhecida como Alto Santo, é construída uma igreja sede do culto, batizada de CICLU – Centro de Iluminação Cristã Luz Universal. A bebida passa a se chamar Daime, num rogativo de “dai-me força, dai-me amor, dai-me luz”. Nesse período de 40 anos (1931-1971), a doutrina do Santo Daime é composta em sua base doutrinária, que são os ensinos contidos nos 132 hinos do Mestre Irineu, juntamente com o hinário dos seus primeiros companheiros na doutrina, Germano Guilherme, Antônio Gomes, Maria Marques (Maria Damião) e João Pereira, todos contemporâneos de Mestre Irineu.

É importante salientar que, além do Santo Daime, existem outras correntes religiosas que fazem uso da ayahuasca. Dentre as diversas manifestações, podemos citar duas que, junto com o Santo Daime, foram as três primeiras e mais importantes a serem criadas e difundidas. É o caso do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, conhecida como Barquinha, criada pelo maranhense Daniel Pereira de Matos em junho de 1945 e a UDV – Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, criada em 22 de julho de 1961, pelo baiano José Gabriel da Costa, em Porto Velho, Rondônia. Outro fator importante é que essas três principais denominações foram criadas por nordestinos que foram trabalhar nos ciclos da borracha, dois deles nos próprios seringais e outro nos comércios que acompanhavam esse fenômeno.

Com o passar dos anos, o Santo Daime recebe um grande número de pessoas, com um caráter de doutrina curadora. Mestre Irineu acolhe pessoas, curas ali são relatadas e muitos se iniciam nos estudos espirituais, como é o caso de Sebastião Mota de Melo, Wilson Carneiro, entre outros, que relatam curas de males físicos e começam a seguir na Doutrina. Dentre os seguidores de Mestre Irineu, Sebastião Mota, posteriormente, terá um papel fundamental para a expansão do culto para o Brasil e Exterior.

Um dos principais seguidores da doutrina do Santo Daime, Sebastião Mota de Melo, nasceu em 7 de outubro de 1920, em Eirunepé, no estado de Amazonas. Desde pequeno, já tinha visões sobre a espiritualidade, segundo afirma em entrevista para Alverga (1992):

Desde a idade de oito anos, já me acontecia toda sorte de coisa! Primeiro eu comecei voando no mundo e conhecendo tudo. Meu espírito se desprendia, e eu viajava por muitos lugares e achava aquilo estranho. Mas o pessoal não dava valor aquilo não, eu as vezes ouvia muita coisa dos espíritos, o pessoal achava que era coisa de menino. Mas, quando davam fé, acontecia! (ALVERGA, 1992, p. 74).


Sebastião, por alguns anos, foi adepto do espiritismo, não institucionalmente, mas de uma forma mais cabocla, na qual exercia trabalhos de cura através de sua mediunidade junto com o espírito do Dr. José Bezerra de Menezes, realizando cirurgias espirituais. Nesse período, “trabalhava” em conjunto com o Senhor Osvaldo, caboclo que o iniciou nos estudos mediúnicos espíritas. Depois de bastante tempo “trabalhando” dentro das matas, Senhor Osvaldo lhe aconselhou a ir para a cidade e dar por encerrado seus trabalhos na mata. Sebastião se mudou do seringal Adélia com toda sua família, para uma colocação onde já havia alguns parentes de Rita Gregório de Melo, sua esposa, morando na região.

Acometido por uma doença que lhe afligia bastante, Sebastião procura por Mestre Irineu em seu centro em 1965, tendo contato com a doutrina e com sua prática de cura. Fernandes (1986) relata aquela experiência mística:

Ao tomar o daime pela primeira vez, seu espírito separou-se da matéria e ele pôde ver o próprio corpo ser operado por uma equipe médica. Seu corpo foi dissecado, chegando a desunir os ossos da carne e mostraram o esqueleto. Tiraram três bichos do ventre, semelhantes a lagartas, fecharam o corpo e depois deram a ordem de concluído. Recobrando a consciência, levantou-se do chão, sentou em um banco próximo e continuou mirando a confirmação daquela operação (FERNANDES, 1986, p.45).


Em 6 de julho de 1971, Mestre Irineu faleceu, ocasionando uma desestruturação do seu centro, o CICLU. Disputas de terras e de liderança espiritual começam a aparecer, ocasionando dissidências no culto. Dentre alguns dissidentes do centro está Sebastião Mota de Melo que, em 1974, juntamente com sua família e um grande número de pessoas deixa de frequentar o CICLU e partem para um novo local. Nesta época, Sebastião Mota de Melo já era considerado uma liderança espiritual e já considerado como um “padrinho”,2 abria trabalhos com o daime em sua casa com a permissão do Mestre Irineu, para algumas pessoas que não podiam se deslocar até o centro. Nesse momento, em suas revelações espirituais, padrinho Sebastião recebe orientações do astral3 para levantar uma nova bandeira, uma nova vertente de trabalho com o daime.

Padrinho Sebastião irá se intitular como sucessor de Mestre Irineu e fundará o CEFLURIS – Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra. Com a união de 43 famílias de seringueiros que se organizaram sob princípios comunitários, substituindo a forma privada de propriedade para a coletiva, com divisão igualitária de tudo que era produzido, tendo Padrinho Sebastião como líder, formou-se, em 1975, nos arredores de Rio Branco, Acre, uma comunidade, a Colônia Cinco Mil, em uma área de 380 hectares no total.

O culto passa a ser bem mais difundido, uma das novas abrangências que Padrinho Sebastião inclui ao culto é de expansão, mesmo que no Santo Daime não se pratique o proselitismo. Há um aumento de pessoas querendo conhecer a doutrina, principalmente pelo contexto da época vigente. Era um período de efervescência de ideais e movimentos alternativos como a contracultura, o movimento hippie, além de práticas espiritualistas, como a meditação e a expansão da consciência. Esses movimentos estavam em constante divulgação tendo alguns veículos de imprensa especializados, como revistas e jornais, que traziam informações sobre esses novos movimentos espiritualistas. Podemos citar dentre alguns periódicos a revista Planeta4 que circula no Brasil desde 1972, abordando temas como: esoterismo, ufologia, parapsicologia e meio ambiente.

Padrinho Sebastião e suas revelações espirituais acentuavam o chamado para levar a sua comunidade a procurar um local mais afastado dos centros urbanos. O desmatamento da região, o aumento de moradores nas proximidades da Colônia prejudicava a agricultura e, em 1980, a comunidade se desloca para um seringal, chamado Rio do Ouro. Nestas terras, eles trabalharam por dois anos e, mesmo sendo autorizados pelo INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, uma empresa do sul acaba contestando essas terras, afirmando serem privadas. Em 1983, a comunidade parte então a outra extensa área de terra indicada pelo INCRA, localizada nas margens do igarapé Mapiá, no município de Pauini, Amazonas.

Nesta nova peregrinação para esse local, que para Padrinho Sebastião seria o paraíso terrestre, chamando-o de “Nova Jerusalém”, sobressaem-se as características de um povo destinado que confiava no seu líder, como descreve Alverga (1984, p.225): “Com dificuldades de toda espécie, precariedade de alimentação e transporte, o grupo pioneiro começou a derrubada dos trechos destinados à vila e iniciou o traçado das estradas de seringa, demarcação das colocações e etc.” Muitas dificuldades irão surgir nessa viagem rumo a essa “Nova Jerusalém”, buscada pelo padrinho Sebastião e seu povo. Doenças como malária eram bastante frequentes, além dos riscos que uma floresta nativa pode apresentar.

Depois de toda essa peregrinação, é fundada, em 1983, a vila Céu do Mapiá, em Pauini, Amazonas. Até os dias atuais, se conserva como a matriz do que anteriormente era conhecido como CEFLURIS, atualmente ICEFLU. Das linhas dissidentes, hoje é a que concentra maior número de igrejas, espalhadas por todo o Brasil e exterior.

Todo esse fenômeno espiritual acontecendo nesse momento, assim como as primeiras reportagens sobre o tema, acabaram despertando também a curiosidade dos órgãos reguladores governamentais, principalmente por seu sacramento ser uma bebida psicoativa indígena que era qualificada de forma pejorativa, com preconceito e desconhecimento. As autoridades brasileiras da época estavam seguindo um movimento mundial iniciado nos EUA de forte repressão às drogas, tendência essa que se limitava a estudar todos os assuntos relacionados em uma ótica repressora e, no caso do daime, classificando a bebida como uma droga alucinógena. Algumas comissões de estudos foram criadas no início da década de 1980 para visitar “o povo do Daime” e sua comunidade, sendo de extrema importância as sugestões da comunidade para inserir nessa comissão historiadores, antropólogos, sociólogos, botânicos, psicólogos, não apenas profissionais relacionados a órgãos controladores e repressores, como policiais e militares.

Em 1982, a primeira comissão visitou o seringal Rio do Ouro, um dos locais em que a irmandade liderada pelo padrinho Sebastião havia se instalado, como relata Alverga (1984, p.135) 

Por volta de setembro de 1982, saiu nos jornais do Rio e de São Paulo uma pequena notícia, dando conta que o ministério da justiça nomeara uma comissão, com representantes do exército, promotoria pública e federal, com o intuito de investigar in loco o funcionamento de uma seita religiosa que fazia uso de uma bebida alucinógena, chamada Daime.


Dentre as pessoas que formavam essa comissão, estavam o Coronel Guarino, comandante do batalhão especial de fronteiras, seu assessor, Capitão Forini, o antropólogo Doutor Clodomir Monteiro e o diretor da Fundação Cultural do Estado do Acre, Doutor Jacó.

Em 1984, foi a vez de visitar a comunidade Céu do Mapiá, em Pauini, Amazonas. Ambas as comissões, em suas conclusões finais, deram ênfase na seriedade do trabalho espiritual desenvolvido nas comunidades, além da idoneidade e capacidade produtiva do grupo.

Mas é no ano de 1986 que será criada uma portaria da Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde que incluía os principais alcaloides contidos na bebida, a harmina e a dimetiltriptamina (DMT) como substâncias com elementos psicoativos perigosos, classificados juntamente de substâncias como o cloridrato de cocaína, heroína e outros psicotrópicos. Houve uma mobilização por parte dos grupos religiosos, pois, pela primeira vez, os grupos, de uma certa forma, estavam sendo impedidos de fazer uso da bebida em seus rituais.

Criou-se então um grupo multidisciplinar pelo CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes), que atestou, através de um levantamento de campo junto a diversas comunidades e centros usuários da bebida, que seu uso ritual não causaria efeitos degenerativos, tanto psíquicos, quanto sociais, retirando-a da lista de substâncias proibidas.

Buscando uma legitimação do seu uso religioso, é criado um Grupo Multidisciplinar de Trabalho sobre a Ayahuasca (GMT - Ayahuasca) do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) em 2006. Este grupo teve como objetivo contribuir para a plena implementação do que até então havia sido discutido e aprovado sobre o “uso religioso da ayahuasca”, não existindo hoje nenhum impedimento legal em relação às práticas dos cultos ou ao consumo ritual da bebida. Em 2008, é formalizado o pedido por parte de três grupos tradicionais5,fundadores das doutrinas ayahuasqueiras contemporâneas, de reconhecimento do uso religioso da Ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil, com o número do processo 01450.008678/2008-61, aberto em 20/05/08, na Prefeitura de Rio Branco- Acre, com a justificativa que de que “as doutrinas do Daime/Vegetal, como estabelecidas por seus mestres fundadores, tornaram-se partes indissociáveis da sociedade brasileira, podendo assim receber nosso reconhecimento como patrimônio cultural do nosso país”6.



1 A palavra “enteógeno” é um neologismo derivado do inglês “entheogen”. Vem do grego “Entheos” + “Genesthe”, que significa “Deus interior” + “que gera”. O significado literal é algo como: “Que gera Deus interior”.

2 Um tutor, um guia espiritual

3 O astral, nessa tradição, equivale ao mundo espiritual, de onde viria a fonte de luz que ilumina a terra, seres superiores e seus ensinamentos.

4 Revista periódica mensal bastante conhecida com temáticas esotéricas, místicas e ufológicas. Circula no Brasil desde 1972, seu auge nesse tipo de abordagem foi na década de 70 e o início da década de 80, posteriormente passa a tratar outros assuntos como ecologia e meio ambiente. ( www.revistaplaneta.com.br )

5 Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo (CICLU- Santo Daime); Casa de Jesus – Fonte de Luz (Barquinha) e Centro Espírita Beneficente União do Vegetal – UDV.

6 http://www.bialabate.net/wp-content/uploads/2009/07/Pedido_Tombamento_Ayahuasca_IPHAN.pdf 

O DAIME NO CEARÁ


Dos primórdios de uma vila de pescadores para um dos pontos turísticos mais procurados do Estado, distante 12 km da sede do município de Aracati, ao qual pertence, e a 165 km da capital cearense, Canoa Quebrada é uma praia conhecida por ser um local paradisíaco e exótico, que atraiu viajantes curiosos para conhecer uma vila de pescadores isolada e rústica, a maioria mochileiros que buscavam paz e tranquilidade. Segundo o censo realizado em 2010 pelo IBGE, Canoa Quebrada é definida como uma AUI - Área Urbana Isolada, por ser considerada uma área urbana, porém separada do município de Aracati, por uma área rural ou outra área limite. Possui 2.918 habitantes e é composta por 1.491 domicílios.1

Nas origens do vilarejo, de acordo com relato de memória, o naufrágio de uma embarcação, teria dado o nome do local, como sugere a descrição de Silva (2013, p. 74): “José da Rocha Freire, historiador e poeta já falecido, mais conhecido pelos munícipes como Zé da Melancia, conta em versos, que a designação de Canoa Quebrada, deve-se ao naufrágio de um navio português, que encalhou na enseada”.

Essa embarcação era capitaneada pelo português Francisco Ayres da Cunha, que, segundo as narrativas do poeta Zé da melancia, ao se chocar nessa formação rochosa, ficou encalhada na beira da praia atraindo a atenção dos nativos para verem a “Canoa quebrada na beira da praia”, o que teria originado o topônimo.

O episódio real ou imaginário faz referência aos primeiros tempos da colonização, ao momento do estabelecimento das capitanias hereditárias. Ayres da Cunha, juntamente com Fernão Álvares e João de Barros, associaram-se e promoveram grande expedição para tomar posse das “capitanias do norte”. A expedição, sabe-se, foi malograda, em decorrência de naufrágio na costa do Maranhão, no qual Cunha perdeu a vida, conforme destaca Varnhagem (1877).

Além da dificuldade de acesso, não existiam estradas, sequer as chamadas “carroçais”, apenas uma trilha que alguns veículos se limitavam a passar, fazendo o visitante descer e fazer a pé todo o percurso que incluía subir uma grande duna.

O vilarejo não dispunha de energia elétrica, e água potável só era encontrada em algumas cacimbas ou posteriormente em um único chafariz, no qual moradores a buscavam, com métodos de transporte rudimentares:

A vila era muito simples, e nessa época 1982 ainda não tinha estrada que chegasse até aqui a vila, você tinha que descer lá embaixo, no pé do morro, a estrada de Aracati chegava até ali, você tinha que carregar as mochilas nas costas e subir a duna, a pé, n tinha energia elétrica, nem agua encanada, o pessoal carregava a agua nas costas nos galões de agua em um poço que tinha um cata-vento, depois um chafariz, o pessoal abastecia, fazia a fila das latas de agua, pra levar pra casa, carregando nas costas ou no jumento, pra quem tinha um dinheirinho pra pagar, paga um frete no jumento (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Um dos fatores importantes para o conhecimento sobre Canoa Quebrada foi a gravação de um filme francês, intitulado “Operação Tumulto” de 1968. O filme, na verdade, nunca foi exibido, por motivos controversos. Alguns dizem que o cineasta Édouard Luntz teria mudado o roteiro do filme desagradando os produtores norte-americanos; outros dizem que a produção desagradou os militares no período da ditadura militar.2 O que se sabe é que nunca houve exibição do filme, apenas uma divulgação na Europa de algumas imagens, o que possivelmente fez com que alguns aventureiros viessem procurar aquele local exótico e de natureza bela e simples.

Ao pensarmos Canoa Quebrada como esse povoado em formação com influências indígenas, negras, dos nativos, posteriormente se somando com a chegada dos visitantes multiculturais que se fixaram na localidade, estreitando relações e transformando aquele ambiente, percebemos que essa transformação gradativamente foi formando uma nova mentalidade de uma localidade que se dispôs aberta para o novo, novas ideias, novos ideais; isto se dá principalmente quando esses nativos acolhem em suas residências os primeiros novos visitantes, e este grupo vai se moldando a essas novas ideias relacionadas ao bem-estar com a natureza, o respeito, a paz e o amor entre os indivíduos.

A vida era um paraíso, eu posso dizer que conheci o paraíso na terra, foi esse aqui, porque tinha tudo que eu e outras pessoas procuravam que já citei, tudo que era de bom, principalmente uma característica marcante aqui, que fizesse que eu ficasse aqui junto com outras pessoas, foi a hospitalidade do povo local, a cultura em geral, e principalmente essa característica cultural foi a hospitalidade que nunca me fez sentir um estrangeiro, foi o único lugar que cheguei e não me senti um estrangeiro, me senti em casa, dentro de casa (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).

Ah era legal, a gente morava em casa com janela aberta, porta aberta, não tinha luz elétrica e nem agua encanada, a gente ia pegar água no poço, era outra história, outra vida, um lugar que a gente morava com muito prazer longe dessa babilônia, desse capitalismo, quando chegou o “capetalismo” Canoa Quebrada acabou...” (ENTREVISTA CONCEDIDA POR MARIN GONZALES ALBERTO, 2016).


Através dos depoimentos colhidos, percebe-se que parte desses jovens tinha ligação com o ambiente de contestação do fim da década de 60 e início da década de 70, dentre os quais alguns influenciados pelo movimento “hippie”. Essa juventude contestava os valores morais, políticos e culturais do momento, valorizando a amizade, a paz e o amor, valores muito bem encaixados e encontrados na calmaria e tranquilidade dessa vila de pescadores.

Logo houve uma empatia entre esses jovens com os nativos, fazendo que essa aproximação cada vez trouxesse mais elementos a serem incorporados nessa localidade, já que esses jovens se instalaram se relacionando com esse povoado. Muitos pescadores cediam espaços em suas casas para esses jovens, na maioria das vezes, sem atividade comercial, muitos fizeram famílias, trazendo diversas influências culturais, segundo Silva (2013, p.80):

Eles foram atraídos pelo cenário bucólico, pela bela unidade paisagística natural e por uma população nativa, apresentando costumes simples e vida hospitaleira. Os hippies passaram a frequentar a região, num convívio de amizade com os canoenses, transformando o lugar num reduto de “paz e amor”, unindo “mil culturas”.


Diríamos que toda essa relação embasada na cordialidade entre nativos e hippies, juntamente com paisagens belas e exóticas, longe de atividades comerciais predatórias, sem todos os males que assolavam o planeta naquele momento, faziam de Canoa Quebrada um dos locais paradisíacos para esse movimento, fixando tal ideia no imaginário popular do estado do Ceará, de Canoa Quebrada como a “praia dos hippies”.

Canoa não se diferenciava muito na sua parte física das outras comunidades litorâneas, mas sim em que diz respeito a hospitalidade, isso é um dado muito importante, muito forte, é um dado imaterial que uma cultura possui, que faz uma característica diferenciada, aliada a uma beleza natural do local que é fantástica, um negócio assim surreal (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Todos esses ideais alternativos eram distintos e predominavam em várias esferas, sejam elas culturais, sociais e até mesmo espirituais, nas quais aquela juventude buscava o novo, inclusive em relação às doutrinas orientais, a meditação, o budismo, o movimento Hare Krishna, o hinduísmo, entre outras vertentes. Havia também o uso de substâncias psicoativas, não somente em um contexto recreativo, mas sim de autoconhecimento, sendo essas práticas direcionadas à busca de novas terapias, nas sendas abertas por contemporâneos como o escritor Aldous Huxley3, autor da obra de ficção Admirável Mundo Novo, que faz referência a uma sociedade tecnológica futurista; e o professor de psicologia clínica de Havard, Timothy Leary,4que usava doses de LSD em seus experimentos com alunos e se tornou um dos gurus da contracultura.5

A semente plantada por esses viajantes que chegaram em Canoa Quebrada vai florescer na localidade, fazendo com que alguns deles passem a morar ali, encontrando inicialmente um ambiente propício para exercer o seu modo de vida, englobando conceitos de pacificidade e harmonia com as pessoas e a natureza. Ao artesanato diverso já existente, como as rendas dos nativos, somam-se atividades por eles criadas e desenvolvidas, como joias em prata, arte com matérias diversos como durepox, couro, arame e etc.

Eu gosto muito ainda de viajar, na época que conheci Canoa Quebrada era viajante, mochileiro, artesão, viajava muito no Brasil, na Europa, na Ásia na índia, vendia meus matérias, procurando e vendendo pedra, sou ourives joalheiro, trabalho prata ouro, lapido pedra. Praticamente não tinha ourives aqui, esse trabalho que se vende hoje na praia, a maioria foram copiados de mim e do Zoinho, trabalhávamos juntos, esse pessoal que trabalha prata hoje praticamente não criaram nada, copiaram nós (ENTREVISTA CONCEDIDA POR MARIN GONZALES ALBERTO, 2016).


O ambiente livre favoreceu também a experiência de novas formas de espiritualidade, que, em sua essência, estava em constante proximidade com tudo aquilo que eles buscavam naquele momento, principalmente pelo uso de uma substância psicoativa. Num primeiro momento, por muitos serem ou já terem sido usuários de outras substâncias psicoativas, surgiu a curiosidade sobre os efeitos do daime. Segundo os primeiros adeptos, ainda não se tinha conhecimento do que aquilo realmente era:

Vários anos depois aqui nem eu tinha informação a respeito de daime, ayahuasca, nessa época nada, né, o que rolava por aqui por conta das visitas e tudo, a gente fumava, era o que nós conhecíamos, não tinha outras substâncias aqui na comunidade, somente o fumo, passaram então vários anos e começaram a chegar outras substâncias [...] até quando de repente, um dia, chegou a novidade que tinha chegado uma bebida e que iria ser tomada... (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Além de se sentirem atraídos por aquela nova forma de espiritualidade que fazia uso de uma substância psicoativa - sendo os psicoativos fator importante que moldou suas vidas - os novos adeptos viam no Santo Daime uma forma de buscar o autoconhecimento, num primeiro momento, sem ter nenhum método regulador ou pessoa que lhes indicassem como ser ou se portar nas decisões e no seu modo de viver, mas apenas o próprio contato com a bebida e os cânticos, partindo daí a busca para conhecer a si próprio.


1 SIQUEIRA, Felipe de Souza. URANO, Débora goes. PEREIRA, Raquel Maria Fontes do Amaral. O setor hoteleiro na praia de Canoa Quebrada/CE: Processo de expansão urbana e turística. Revista de turismo contemporâneo. 2015.

2 Conforme informações disponíveis em: <http://gentedemidia.blogspot.com.br/2011/01/cinema-o- filme-proibido-feito-em-canoa.html>

3 Escritor britânico, entusiasta do uso do ácido lisérgico(LSD) como descobrimento e ápice da condição humana. https://www.biography.com/people/aldous-huxley-9348198

4 Psicólogo, neurocientista, escritor, ficou conhecido como estudioso dos benefícios terapêuticos e espirituais do LSD. Personagem importante na década de 60, professor da universidade de Harvard, fez experimentos com seus alunos ministrando LSD de forma terapêutica. https://psychology.fas.harvard.edu/people/timothy-leary

5 SAES, Diogo Xavier. Os Cromáticos anos 60: contracultura, drogas e psicodelismo. Simpósio II congresso internacional de estudos do rock. Unioeste, 2015.

O DAIME NA CANOA QUEBRADA

 

Os primeiros indícios sobre a doutrina do Santo Daime no Ceará, segundo alguns dos adeptos entrevistados são similares. Antes do primeiro contato dos adeptos moradores de Canoa Quebrada, no município de Aracati com a doutrina, alguns conviveram com um homem chamado Oswaldo, um dos vários viajantes que passavam por Canoa Quebrada. De nacionalidade Argentina, de origem da Terra do Fogo, Oswaldo passou pela praia no início da década de 90. Ele falava sobre o Santo Daime e dizia que já tinha frequentado o Céu do Mapiá, comunidade localizada em Pauini (AM), berço de uma das matrizes da doutrina do Santo Daime. Em suas falas sobre a experiência, Oswaldo disse que teria vivido na comunidade liderada por Padrinho Sebastião e que tinha convivido pessoalmente com esse líder em seus dois últimos anos de vida, de 1988 até 1990.

Esses relatos das experiências de Oswaldo com o Santo Daime ficaram marcados na lembrança de alguns adeptos que mais tarde vieram a conhecer a doutrina e a participar da fundação da Igreja Flor da Canoa, em 1998, a primeira igreja do Santo Daime fundada no Ceará. As histórias que ele contava sobre a doutrina e o Padrinho Sebastião só iriam ser entendidas por esses futuros adeptos depois de vários anos, como nos foi afirmado nos seguintes depoimentos:

Fazia dois anos que tinha chegado Oswaldo, um argentino da Terra do Fogo, falando a todo o povo, porque Canoa, na época, eram 500 pessoas, não é como agora, o povo se conhecia e tudo era pequenininho, tu ia daqui pra lá era rapidinho, era outra história, né? Aí antes de 91, quando nasceu Noemi, minha primeira filha, lá em Canoa, já estava Oswaldo lá, doutrinando a todo mundo, falando da coisa que nós agora sabemos, depois de 20 anos, e olhe lá, me contava coisa que até hoje eu não entendo muito não...” 19 de novembro de 2014 (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO, 2014)

O José falou que, mais ou menos em 91, tinha uma pessoa aqui chamada Oswaldo que falava em daime, disse que tinha vivido no Mapiá (...) Eu conheci ele também, ele me falou sobre como era e tudo mais, mas só de falar, foi informação verbal, falava alguma coisa com fundamento da doutrina, aqui e acolá ele cantava algum hino da doutrina” (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Dentre esses primeiros adeptos, está José Olano, argentino, que assim como vários estrangeiros “mochileiros”, se encantou com Canoa Quebrada e decidiu nela se instalar. José era mestre ourives e foi um dos primeiros a trabalhar com artesanato de joias em prata, inclusive iniciando várias pessoas nessa arte, fazendo Canoa Quebrada ser conhecida como uma localidade onde esse tipo de artesanato era bastante autêntico e difundido, ainda hoje sendo uma das marcas da localidade:

Têm artesanato de todo os tipos: durepox, couro, arame, coco, etc. O que mais predomina é a prata, atualmente tem umas oito oficinas trabalhando a prata. Vale citar dois mestres prateiros: José e Beto, que de suas oficinas nasceram bons profissionais da prata. Infelizmente hoje essa arte está ameaçada por comerciantes de artesanatos que compram em grandes quantidades, e vendem mais barato (CANOA NET, 2014).


José passa a ser bastante conhecido entre os moradores, principalmente entre os amigos estrangeiros que estavam ali em busca de um local de paz e tranquilidade, tornando-se também o “introdutor” das novidades na localidade. É através de José argentino, como era conhecido, que o Santo Daime vai entrar em Canoa Quebrada.

Esse primeiro contato de José com Oswaldo fez com que o mesmo ficasse com essa lembrança do Daime em mente por algum tempo e, em janeiro de 1994, um amigo de José, chamado Flávio Bombonato, mineiro, chega em Canoa Quebrada, vindo de Minas Gerais, trazendo uma garrafa de 750ml com a bebida. José sentiu-se animado e logo tratou de providenciar um local para poderem tomar a bebida conhecida como daime. Juntamente com sua esposa, Socorro, Flávio e mais duas pessoas, tomaram a bebida na casa de um amigo, chamado Oscar de la Santa, conhecido popularmente em Canoa Quebrada como Índio.

No ano de 94, foi em janeiro de 94, que chegou o Flávio, aí ele trouxe um daime de Minas Gerais, lá de morro de São Sebastião de Ouro Preto, aí tomamos na casa do Oscar, ele emprestou lá a casa pra nós e tomamos Flávio, Socorro, eu e Luiza uma, menina de Minas, e Aracelia, uma amiga nossa, foi lá a primeira vez que tomamos. Aí, puxa, eu gostei pra caramba né, me assustei bastante também, aí foi que disso, isso foi em 19 de janeiro de 1994 (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO, 2014)

Bom então quando chega a bebida aqui pela primeira vez eu já estava com uma lanchonete lá em cima no comércio, e me pediram minha casa pra tomar, José e mais uns companheiros, foi a primeira vez que tive um contato dessa forma, indireto com a bebida, e por conta da relação pessoal e pela quantidade que era quase um litro, uma garrafa somente, não fui convidado para participar, mesmo sendo tomado aqui na minha casa. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Esse primeiro contato com a bebida fez surgir o interesse de José Olano pelo Santo Daime, que passou a buscar a bebida para continuar fazendo uso juntamente com mais pessoas que foram se juntando ao grupo posteriormente. É importante salientar que, para uma reunião se configurar como um trabalho da doutrina do Santo Daime alguns elementos específicos devem existir, como os hinos, que geralmente são do fundador da doutrina (Mestre Irineu) ou dos seus principais seguidores, a caracterização do fardamento dos membros com uma indumentária específica para homens e mulheres, existindo dois tipos de fardamento, a azul e a branca, além de preces e orações cristãs e um modo padrão de leitura para abertura e fechamento dos trabalhos.

Apesar desse primeiro contato não ter sido ainda um trabalho ritualístico completo da doutrina, já foi em um modo de trabalho espiritual, pois eram cantados alguns hinos do Mestre Irineu, além da bebida trazida de Minas Gerais ser oriunda de um núcleo espiritualista chamado Flor do Ouro. Indagado de como foram esses primeiros encontros e se já eram com os hinos do Santo Daime, José e Oscar de la Santa responderam:

Sempre foi com os hinos, sempre foi com o mestre Irineu, desde o princípio, a primeira vez na casa do Oscar que chegou Flávio, foi cantando o mestre Irineu, eu me lembro que eu começava a cantar com os gritos, e o povo sorrindo de mim (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO,2014)

E depois a primeira vez que tomei foi na casa de José, eles trouxeram a bebida já um pouco mais embasada na questão da doutrina, porque, quando tomei pela primeira vez, a gente já vinha direcionado por ser um daime que veio da Barquinha, então já veio direcionado para uma linha espiritual, não era como chegou a bebida toma e faz o que bem entender. A partir daí já veio direcionado nessa linha espiritual, já era daime, já tinha os hinos, já tinha todo o entorno espiritual, embora a gente não tinha condições de fazer nada, nós não éramos capacitados, só que por força da energia mesmo, a gente já se encaminhou nesse sentido (ENTREVISTA CONCEDIDA POR OSCAR DELLA SANTA, 2014).


Percebemos então que, desde o primeiro encontro, já havia uma relação para com um trabalho espiritual e não apenas tomavam a bebida sem nenhum direcionamento ou de forma recreativa, apesar de ainda não se tratar da doutrina e de que somente um participante do grupo, chamado Flávio, soubesse então cantar alguns dos hinos do ritual.

O grupo de pessoas foi aumentando, assim como o modelo do trabalho foi cada vez incorporando os elementos padrões da doutrina, mas havia uma questão chave para a manutenção do grupo e a continuidade dos trabalhos espirituais, que era o sacramento, ou seja, a bebida. Foi então que José Olano, que estava de viagem marcada para Argentina, passa antes por Ouro Preto, em Minas Gerais, e visita o núcleo de onde Flávio tinha trazido a bebida para Canoa Quebrada. Nessa visita, José e Socorro participam de um trabalho no dia 8 de março de 1994, dia internacional da mulher. O grupo consegue o contato para adquirir a bebida com uma senhora denominada Sandra, que era filha do mestre Antônio Geraldo1, da Barquinha. Com a bebida sendo adquirida pelo grupo, os trabalhos espirituais em Canoa passam a ser realizados de forma itinerante, em diversos locais, geralmente em casas próprias dos participantes ou de amigos.

Porque na época era legal, foi o Flávio que trouxe, aí não tinha data marcada, era quando o daime chegava, ai depois o Flávio tinha um canal com a Sandra, da Barquinha, do Rio Branco, juntava uma grana, mandava a grana e ela mandava um daime, agora fortíssimo, aí não tinha, quando chegava o daime, era uma felicidade. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR RENNER RAMOS DA SILVA, 2016)


Geralmente quando um grupo está se iniciando nos estudos espirituais da doutrina do Santo Daime e quando não há pessoas nesse grupo que tenham muita experiência da composição dos trabalhos, há uma busca tendo como referência modelos originários de igrejas ou grupos matrizes, na sua grande maioria, oriundos da floresta, ambiente originário da doutrina. Para se constituir uma igreja do Daime em alguma localidade, o grupo recebe alguém ou algumas pessoas experientes da doutrina, em forma de comitiva, que realizam trabalhos passando os ensinamentos da composição desses trabalhos, que enfatizam principalmente a maneira correta da execução dos hinos, das preces2, do bailado3, da forma estrutural e da disposição dos adeptos no salão e condução do rito. Também alguns adeptos do grupo iniciante vão conhecer essas matrizes em sua região original, no caso do Santo Daime, na floresta Amazônica.

Não sendo diferente de outras localidades em que a doutrina se estabeleceu, Canoa Quebrada também recebeu a visita de algumas comitivas. Um desses grupos chegou ao Ceará em 1997 e era composto por Maurílio Reis (dirigente da colônia cinco mil) e sua esposa, Maria das Neves (filha do padrinho Sebastião Mota de Melo), Ronaldo e Manoel Moraes, todos com histórico de parentesco ou convivência com os grupos iniciais da floresta. Na verdade, essa visita foi uma passagem do grupo pelo Ceará, Maurílio e Neves estavam seguindo em viagem e trouxeram Manoel Moraes de volta ao Ceará depois de 50 anos de sua partida para trabalhar nos seringais. Somente Ronaldo, músico, ficou mais alguns dias no Ceará para passar as melodias dos hinos para Carlito, que na época era o músico do grupo, além do toque do maracá4.

O ano anterior ele tinha vindo com senhor Manoel Moraes e o Ronaldo, na verdade não veio nem pra cá não, foi pra Fortaleza, que o senhor Manoel Moraes tinha a família dele que fazia 50 anos que ele não via, ai ele pediu pra a Maurílio trazer, o Maurílio trouxe... (ENTREVISTA CONCEDIDA POR RENNER RAMOS DA SILVA, 2016).

Aí ele apareceu, um dia apareceu, a primeira vez foi em Fortaleza, em um apartamento que tinha em Aldeota, Maurílio, Neves, Senhor Manoel Moraes e Ronaldo. Maurílio e Neves estavam vindo do Japão e aí pagaram a viagem para Senhor Manoel Moraes para vir para o Ceará, porque esse Manoel Moraes fazia 50 anos que não vinha para o Ceará, tinha uns 70 na época, foi menino 18, 20 anos foi pro Rio Branco e numa época que conheceu o mestre Irineu, e depois que faleceu o mestre Irineu foi lá pra Colônia 5000, dizem que padrinho Sebastiao estava esperando ele na porta. O Ronaldo ele ficou um tempo, depois de 97, depois da primeira vez, ele ficou um mês e meio ou dois, ele ensinando o Carlito a tocar violão e a tocar maracá e ficava a tarde toda tocando e aprendendo, que para nós era novo, nós sabíamos que queria tomar daime, nessa época 94, 95, maneira dos trabalhos, era liberal pra caramba, nós não sabíamos cantar e o único que sabia cantar era o Flávio (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO, 2014).


A partir desse momento, este grupo que se reúne para realizar os trabalhos espirituais em Canoa Quebrada já pode se denominar como um “ponto” da doutrina, ou seja, um núcleo para os daimistas, embora não fosse ainda uma igreja.

Somente um ano depois, em 1998, já sabendo do grupo que tomava daime no Ceará, foi que Maurílio Reis veio com uma comitiva maior para abrir oficialmente os trabalhos em Canoa Quebrada e participar da Fundação da Igreja Flor da Canoa em 14 de março de 1998. Conforme depoimentos e a ata de fundação.

Em 98 vem Maurílio, com Manoel, Neves, Simeão, Valdeci, Cires Beijamar, do Mapiá, e Zé Márcio e Teresa, de Viçosa, Minas, da Igreja do Marcão. Aí eles que abriram a Flor da Canoa, nessa época já fardou Andres, argentino, deixou fardado ele, Carlito e Fernanda, tomando conta da história. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANO, 2014)


Na data específica da fundação da Igreja é realizado o trabalho de cura, passando a ser feito anualmente esse mesmo trabalho no aniversário da Igreja. É escolhida uma diretoria e nomeada a Igreja, compromissos posteriores para criação do estatuto são confirmados, é o que consta na ata da fundação:

Aos 14 dias do mês de março de 1998, com as portas abertas, os presentes abaixo assinados se reúnem com a finalidade de louvar o soberano senhor Deus e criar o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Maria Gregório, entidade que tem como objetivos cura e benfeitoria espiritual através da doutrina do Santo Daime. Por consenso dos presentes, fui escolhido eu, Oscar Antonio Della Santa, para secretariar esta reunião, onde, depois de uma explicação dada por Maurílio Reis, os presentes escolheram como nome do centro “Flor da Canoa” e nomearam a seguinte diretoria: Presidente: Senhora Fernanda Farias Ponte; Vice-Presidente: Carlos Escribano; Tesoureiro: Renner Ramos da Silva; Segundo tesoureiro: Andrés Schuartzman; Secretário: Oscar Antonio Della Santa; Segundo secretário: Lilia de Carvalho Lindoso e como membros do conselho fiscal, Presidente: Marin Gonzales Alberto, Membros: Karl Heinz Krebs, Claudio Gondim, sendo debatida e aprovada esta ata, foi marcada uma reunião para discutir sobre a criação dos estatutos que será realizada no primeiro domingo do mês de abril de 1998. Depois de lida e aprovada, eu, Oscar Antonio Della Santa, redatei esta ata, que vai assinada por quem de direito (ATA DE FUNDAÇÃO DA IGREJA FLOR DA CANOA LAVRADA, 1998)


A Igreja Flor da Canoa é inaugurada, mas ainda se passam três anos se fazendo os trabalhos espirituais na residência dos membros, de forma itinerante. Em 2001, os membros adquirem um terreno à beira da praia, vizinho ao antigo cemitério de Canoa Quebrada. A construção dessa igreja dura em torno de um mês. Esta foi a primeira igreja onde os adeptos realizaram os rituais entre os anos de 2001 até 2008.

Este local foi marcado por diversos fatos que contribuíram posteriormente para a mudança de lugar. Segundo alguns adeptos e jornais locais19, por motivo aparente de perseguição de um membro da Igreja, no dia 30 de julho de 2006, o subtenente responsável pelo destacamento da região, invade a igreja, juntamente com outros policiais, sem ordem judicial e faz ameaças aos membros participantes acusando alguns de tráfico de drogas, relatando que a igreja servia de fachada.

Quando agente tava fazendo uma sessão e ele entrou dentro da sessão, passou a proferir palavras agressivas acusando de usuário de drogas, vagabundos e desocupados.(ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO LIMA DE SOUSA, 2016)

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No dia 5 de agosto de 2006, aconteceu um incidente que marcou o grupo, a igreja sofre um atentado em um momento em que havia pessoas dormindo nas instalações. Há uma tentativa de incendiar o local e como a coberta da igreja era em estilo de palhoça, o fogo se propagou deixando o telhado parcialmente destruído, além de ter sido aberta a chave do gás de cozinha do fogão, com risco de uma catástrofe maior.

Canoa Quebrada, assim como outros locais em que o turismo em massa chegava fortemente, não ficou isenta da grande exploração de imóveis e terrenos. Assim nos descreve Nascimento (2012), a respeito da urbanização do local:

Sua ocupação urbana ocorreu de forma desordenada resultante da implantação de loteamentos privados, da venda e ampliação de casas e do alto adensamento de construções que oportunizaram condições de novas ocupações e disputas pelo/no espaço (NASCIMENTO, 2012, p. 54).


Havia muitos estrangeiros que vinham para Canoa, tendo contato com a localidade alguns optavam em adquirir imóveis, seja para fixar residência, abrir pontos comerciais, pousadas, aumentando assim a especulação imobiliária em Canoa Quebrada. O local onde a igreja estava acabou sendo afetado por essa nova especulação fazendo que parte de seus arredores se tornasse procurado, mudando o panorama do local que antes era mais recluso, tornando-o com mais evidência. Somando-se a isto, o atentado ocorrido, fez com que os membros decidissem vender o terreno e comprar outro mais afastado da “badalação” da praia, inclusive para evitar a aproximação de pessoas unicamente interessadas no princípio psicoativo da bebida, em detrimento de seu significado religioso.

Assim, para a continuidade com tranquilidade dos trabalhos espirituais, foi escolhido um local um pouco mais afastado da entrada de Canoa Quebrada. Sobre essa mudança, Francisco Lima afirma:

Eu me lembro dos trabalhos quando eram feitos aqui na igreja da praia, era muita gente e muitos malucos, muita gente doida mesmo, tipo, vamo ali tem uns caras que tomam um chá e fumam maconha, e tal e tal. Hoje em dia como a igreja já é em outro lugar, mais afastado, não tem esse acesso tão fácil a esses tipos de seres que procuram essa viagem. Hoje os seres que vão são mais realmente que estão procurando a luz, ainda assim vão alguns, mas mais irmãos procurando a luz, vamo dizer assim, quando a igreja era aqui na praia era terrores, dou testemunho de muitas curas, mas também de muitas passagens. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO LIMA DE SOUSA, 2016)


Segundo Percília Matos da Silva, o fundador da doutrina, Mestre Irineu, dizia que o daime curava tudo, só não curava sentença, ou seja, algum desígnio superior ou o próprio karma5 que o indivíduo tinha que passar nesse plano, para na próxima existência estar em uma condição melhor. Ela afirma: “Dentro desse trabalho  não se cura é sentença, porque a sentença  vem de Deus. Têm doenças, tipos de sofrimento, que não tem cura, a pessoa tem de passar. Mas fora disso, tudo tem cura, dentro da obediência que todos devemos ter a Deus, nosso criador”.6

Não somente baseando-se na cura de males físicos, mas sim de muitos males espirituais, o daime traria a cura para a doença, mas a cura viria muitas vezes através do autoconhecimento, conhecer o porquê de ter adquirido aquela enfermidade, como a adquiriu, o que fazer para obter a cura, quando a cura for do merecimento do indivíduo.

Para os adeptos essa seria a cura pelo entendimento, muitas vezes se conformando com sua condição, esperando uma cura além, a própria salvação. Um exemplo que marca esse processo foi de um antigo adepto da doutrina residente no Acre, chamado João Pedro. Relatos dão conta de que esse adepto sofria de uma enfermidade nas pernas diagnosticada como elefantíase; testemunhos outros chamavam a enfermidade de “pé-de-bode”. Em sua experiência com o Daime, teria entrado em contato com a Virgem Soberana Mãe e sido interrogado por ela, se queria a cura para o seu mal físico ou se queria a sua salvação, João Pedro, teria escolhido a segunda opção, a sua salvação7. João Pedro em sua trajetória na doutrina, recebeu um hinário que é cantado em trabalhos voltados para as curas.

Os processos de curas foram acontecendo concomitantemente com a formação do grupo em Canoa Quebrada. Talvez isso tenha sido o que mais chamou atenção das pessoas que testemunhavam essa mudança na vida dos membros que frequentavam, pois antes do Daime, a grande maioria dos adeptos viviam em condições difíceis, relacionadas principalmente em vidas desregradas e sem perspectivas, como abuso de álcool e drogas, como relatam nos depoimentos:

Dou testemunho de várias curas, inclusive de mim mesmo, primeiro, e mais de várias pessoas que se curaram com a santa bebida (...) Como eu já conhecia os meninos do mundo da ilusão, da loucura, comecei a ver a mudança dessas pessoas e nós éramos pessoas amigas e que fazíamos comédia juntas, mas assim, comecei a ver mudanças, finado Edilson, Renner, Beto, eles era que eu tinha mais contato antes do daime, pós daime veio outros, o principal era o finado Edilson que era um irmão amigo nosso, muito doido, querido por todos e eu via ele mudando, perguntava o que estava acontecendo, e ele falava do daime e dizia: tu tem que ir lá, Lima, pra ver, ele esperava sair uma ação que ele tinha de uma grana e ele dizia que, quando saísse, eram os planos dele parar de vez as comédias e aplumar na vida, e ele estava aplumando mesmo (ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO LIMA DE SOUSA, 2016)


Os relatos sobre curas pessoais que mudaram a vida desses adeptos continuam conforme afirma Marin Gonzales Alberto, o “Beto Chileno”:

Sou feliz demais dentro dessa doutrina, me mostrou muitas coisas, me fez entender muitas coisas, assim, antes de entrar estava quase morrendo, usava muita cocaína, muito álcool, estava na babilônia total, eu nunca imaginei um dia que poderia estar na situação que estou agora, eu nem imaginei, sabe quando tu tá lá pra trás, aí o mestre é poderoso e acabei aqui. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR MARIN GONZALES ALBERTO, 2016)


Alguns desses processos de cura envolvem diversas maneiras de “purgação” ou “purificações” chamadas de “limpezas”:

Aí quando eu chego com o daime, daí eu tenho a limpeza, fazia 3 meses que tinha tomado pela primeira vez, aí eu fiz essa viagem e chegando em minha casa vomitei um negócio com sangue assim, aí passei uma semana que quase que ia e que não ia, e com três garrafinhas dessas de vinhos de ¾ de daime da Barquinha, isso foi em dia que me aconteceu foi 1º de junho” (ENTREVISTA CONCEDIDA POR JOSÉ OLANDO, 2014).


Havia convivência entre os adeptos antes de chegar o Santo Daime em Canoa Quebrada, fazendo que houvesse uma abertura entre eles para transmitir essa prática de cura.

Acho que eu tomei em 95, depois de um ano que eles tavam tomando, eu tomei, na época a gente tava fumando pedra, detonando mesmo, cheirando, a gente cheirava demais, depois a gente tava fumando pedra, aí o José começou a dizer, Renner, negócio de fumar pedra, devia tomar era daime” (ENTREVISTA CONCEDIDA POR RENNER RAMOS DA SILVA, 2016)


É importante salientar que existem visões distintas em relação a esse processo de cura, principalmente quando é voltado para reabilitação de dependentes químicos. Pelo fato de esses grupos fazerem o uso da ayahuasca e a mesma ser uma substância psicoativa, existem alusões de que o adepto estaria substituindo “uma droga por outra”; e que pelo fato de a ayahuasca ser usada em um contexto religioso, estaria assim o adepto fazendo uso de uma “droga” socialmente aceita.

Para refletir sobre isso, precisamos considerar o contexto envolvido na experiência dos usos das substâncias e do ambiente em que essas práticas estão inseridas, principalmente se tratando de fatores singulares das substâncias psicoativas. Como já foi dito anteriormente, a ayahuasca é descrita como uma substância enteógena, seu uso está milenarmente ligado a diferenciados propósitos, em sua maioria espirituais, em ambientes propícios para essa experiência.

Para tal discussão, assim como já citamos no início da pesquisa, o médico Norman Zinberg, vai expor essa distinção referindo-se ao uso “controlado” e “compulsivo” de substâncias psicoativas. O uso controlado teria baixos custos sociais, por outro lado, o uso compulsivo seria disfuncional e intenso. Assim, teoricamente, o uso da ayahuasca no culto do Santo Daime vai se assemelhar a esse uso “controlado” de substâncias psicoativas, principalmente porque é regido por regras, valores e padrões de comportamento veiculados por uma subcultura desenvolvida entre grupos de usuários, definindo o que será o uso aceitável, limitado a meios físicos e sociais, estruturando os padrões de comportamento antes, durante e depois do uso e respaldando as obrigações e relações que aos usuários mantêm na esfera social.

O enquadramento de uma substância como enteógena vai ser definido principalmente pela natureza da substância (se seu uso tradicional é voltado ou já foi para esse fim), pelo contexto social de seu uso (quando temos uma realidade religiosa, sagrada ou até tradicional de seu uso) e seus efeitos, sensações no organismo do indivíduo. O simples fato de o indivíduo fazer uso de algum psicoativo não nos pode dar margem para generalizar que todos os usos são iguais e pertencentes ao mesmo contexto, que a mudança, troca ou substituição, na verdade, em resumo não irá fazer tanta diferenciação. Precisamos observar que nessas “trocas” ou “substituições” estão inclusas mudanças no modo de viver de cada indivíduo, valores morais, direcionamento e ajustes sociais e comportamentais. Afinal de contas, não seria suficiente para a dependência de um indivíduo viciado em uma substância como a cocaína a substituição pela ayahuasca, como já enfatizamos, são efeitos diferentes, além do mais, considerando que o daime não é só a substância, mas sim todo o “pacote” contendo direcionamentos sociais, morais, comportamentais, esses últimos sendo os diferenciais maiores.

Ao analisarmos esses fatores percebemos, distinções que variam em relação ao uso dos psicoativos que podem ser compostas por experiências salutares programadas em dia e horários determinados, em busca do autoconhecimento e em locais seguros para uma experiência tranquila, segura e harmoniosa em contraste com o uso desregrado, patológico de substâncias que comprovadamente causam dependência.

Canoa Quebrada com seu forte impacto turístico crescente atrai uma diversidade de pessoas por diversos fatores, uma beleza exótica com suas praias e falésias naturais, uma ampla rede turística, provida de uma gama de hotéis e pousadas, guias, passeios e atrações para os visitantes. Com toda essa rotatividade de pessoas e com a igreja já estabelecida, aumenta o número de pessoas, em sua maioria estrangeiros, que se interessam em conhecer o Santo Daime e participar de um trabalho espiritual. Muitas dessas pessoas já tinham ouvido falar no Santo Daime, outras não, e esse fluxo constante acaba aumentando consideravelmente o número de pessoas a conhecer a doutrina.

A igreja Flor da Canoa passa a ser, por esse fluxo de pessoas, um ponto de difusão da doutrina do Santo Daime, conforme relatam os adeptos:

Aqui tomou muito daime, os estrangeiros, movimento de pessoas que passam ficam um tempo e vão embora, agora ultimamente que tivemos uma permanência de alguns soldados neste batalhão que estão firmes, porque aqui passou muita gente, muitos aprenderam aqui colocaram igrejas em outro canto, guitarristas músicos, que passaram e aprenderam a tocar violão aqui e estão com igrejas em outros lugares, já passaram israelitas, indianos, japoneses, chineses, iraquianos, turcos, todo tipo de gente, gringos da Europa... nativos tinham também, vieram vários nativos, mas alguns se fardaram aqui e foram embora para Europa com as gringas, com eurocard, vários foram pra Holanda, Jamaica, Argentina, tem gente que ficam um tempo, 3 ou 4 meses, 1 ano e vão embora. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR MARIN GONZALES ALBERTO, 2016)

Então o trabalho do grupo daqui da flor da canoa, eu já vi isso na miração, é que haja sempre o daime, e que aqui é um ponto de expansão, já diferentes de outros grupos, que formam aqueles grupos fechados, aqui é sempre rotativo, aqui colheu muita gente da doutrina, são mais ou menos 600 trabalhos registrados no livro de ponto já deve ter mais ou menos isso. (ENTREVISTA CONCEDIDA POR FRANCISCO LIMA DE SOUSA, 2016)


Se tratando de expansão, no que diz respeito a doutrina do Santo Daime no estado do Ceará, precisamente através desse primeiro grupo formado em Canoa Quebrada, outros grupos irão surgir, não de maneira uniforme, mas com influências, principalmente com a saída de algum ou alguns membros desse grupo. Citamos como exemplo Hugo Sousa, que já tinha uma experiência anterior com a ayahuasca e esteve junto do grupo de Canoa Quebrada. Há uma cisão no grupo e Hugo Sousa junto com alguns adeptos deixam de frequentar a igreja em Canoa Quebrada e passam a se reunir e fazer os trabalhos espirituais na residência de Hugo, no sítio Tanques, localizado em Cascavel-CE, posteriormente batizado como Centro Terra da Luz em 2001.  um desenvolvimento nesse grupo, outros adeptos se iniciam nos trabalhos espirituais e passam a frequentar o centro. Por consenso dos integrantes é decido adquirir um terreno para construção do templo, pois necessitava-se de um espaço maior para atender o número crescente de pessoas a maioria vindos da capital. O grupo muda o local dos trabalhos da residência de Hugo Sousa para este terreno adquirido em Guanacés, distrito de Cascavel-CE, no terreno enquanto a igreja é construída, os trabalhos são realizados na casa de José Erivan Bezerra de Oliveira, sociólogo, que passa a dirigir os trabalhos espirituais, a irmandade re-inaugura a igreja em abril de 2007, mudando seu nome para CEFLUJOPE – Centro Eclético da Fluente Luz Universal João Pedro - Céu da Flor do Cajueiro.

1 Antônio Geraldo foi discípulo de Daniel Pereira de Matos, fundador do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, conhecida como Barquinha, uma das três maiores religiões ayahuasqueiras.

2 Orações cristãs, leituras espíritas e preces de abertura e encerramento dos trabalhos

3 Espécie de dança rítmica que é feita nos hinários de maior duração, geralmente nas datas festivas da doutrina, São João, São Pedro, Santo Antônio, etc.

4 Instrumento condutor do trabalho, muito usado em rituais indígenas. Na doutrina, geralmente feito de lata com esferas de metal em seu interior.

5 Expressão usada em algumas doutrinas espiritualistas que se refere as ações do indivíduo ao longo de sua vida, e as consequências causadas por elas nessa vida ou em outra encarnação.

6 Conforme depoimento em: www.santodaime.org/site/religiao-da-floresta/discipulos/percilha-matos- da-silva  Acesso em 07 de junho de 2014

7 Conforme depoimentos em: http://afamiliajuramidam.org/os_companheiros/joao_pedro.htm . Acesso em 7 jun. 2014.